“Tenho certeza que o doutor vai acertar na mega do sábado”, profetizou Toinho, o lavador de carros. Guardando a gorjeta na mão esquerda, enquanto nos ajudava a sair do estacionamento. Movimentos precisos. Competência e alacridade. Discreto “léger de main”, vaga disponível para o novo cliente. BMW conversível, cheirando a dinheiro. Próxima parada: casa lotérica, duplicaríamos nossa aposta nas seis dezenas de sempre.
Totem da tribo da calçada, entre as portas da casa lotérica. Mendicância passiva, mão semiaberta em súplica, quase permanente. Cego, negro, rosto deformado sugestivo da síndrome do Homem Elefante. Mistura de rejeição e piedade, causada pela aparência física. Protegido das vicissitudes dos elementos e das mãos rápidas dos meninos de rua, reconhece facilmente as vozes e os problemas dos habitantes do pequeno mundo ao seu redor. Metafísico muro das lamentações urbanas. Conhecido como Tony.
Guichês da entrada abertos. Suênia Karinne, cabelos cor cereja búlgara, bem cereja, desafiando a discrição imposta pelo vidro embaçado. Sorriso charmoso misturando-se com o reflexo do nosso rosto. Entregamos o formulário com os números da aposta. Lendo e digitando as seis dezenas cuidadosamente; lábios movendo como uma monja em oração. Transação concluída: “Boa sorte”. Prometemos uma motocicleta Bis, cor de rosa, caso acertássemos no sábado. “O senhor vai ganhar desta vez.” Promessas, promessas e promessas… Thamires Michelle, sua colega, tocou repetidamente na janela, chamando nossa atenção para a “Caixinha dos funcionários”. Inserimos nossa contribuição. Caminhamos em direção ao mercado de frutas e vegetais.
Kombi-quiosques vendendo CDs e DVDs, tocando em bom tom, ofertas musicais para todos os gostos. Forró pé de serra e coletânea de músicas da boemia, competindo pela atenção dos clientes. Congregados em frente dos televisores, pequenos grupos assistem pela enésima vez mais uma versão de Tropa de Elite. Pausadamente, policiais em uniforme caminham entre os dois pontos de venda, símbolo vivo de lei e ordem. Meandramos entre debulhadoras de feijão verde, motocicletas estacionadas, pedintes agressivos, esgoto a céu aberto e entramos no mercado. Finalmente, cheiro de fruta madura…
Atmosfera festiva. Clima natalino temperado com a colagem das cores vibrantes das frutas recém-chegadas. Homens sentados em tamboretes ao redor do bar saboreavam bode guisado, acompanhado de doses robustas de aguardente. O assunto do dia é sempre futebol, em todas as suas variações, desde as eleições passadas. Discussões acirradas, às vezes cômicas, sem a paixão intimidante do partidarismo. Estamos a uma semana do Natal. Paz na terra… pelo menos no bar. Escolhemos nossas frutas e vegetais. Pequena parada no açougue “Dois Irmãos”. Compras concluídas. Voltamos à calçada.
Dois homens vestidos com camisas idênticas, de cor negra com a inscrição em verde néon: “Consultor de Estacionamento”. Conversamos sobre o nosso projeto. Primeiro o tópico do dia: a “situação”, sempre o sabor do dia na mesa parca dos excluídos. Temiam mudanças pós-eleitorais, sem um sindicato ou cooperativa para defendê-los. Carteira assinada, plano de saúde, teto ou conta bancária não faz parte do mundo das calçadas. Fato novo. As camisas e o status de consultor estavam provocando reações positivas e inveja ao mesmo tempo. Posando com turistas, gorjetas mais gererosas. Celebridades instantâneas. Chamados de “criativos”, por conceituado cronista do Estado de São Paulo. “Estão dando sorte, doutor…”
O grupo de consultores estava crescendo, vários flanelinhas queriam associar-se. Aspiravam formar uma pequena organização, quando alcançassem a massa critica de dez membros. Doaríamos camisas para os novos membros, até então.
“Ó Fortuna,/tal a lua,/uma forma variável!/Sempre enchendo/ou encolhendo:/ó que vida execrável!/Pouco duras,/quando curas/de nossa mente as mazelas/a pobreza, a riqueza, tu derretes ou congelas”.
Ó Fortuna! “Imperatriz do mundo” caminhe com o povo das calçadas. Desta vez, desta verde vez…