Vitória pírrica dos cavalheiros do retrocesso 

Vitória pírrica dos cavalheiros do retrocesso 

Guerra cultural sobre o aborto que começou nos anos setenta, expandiu-se no próximo século, polarizando a sociedade americana, dividindo homens de mulheres, rural de urbano, religioso de secular, anglo-americanos de mais recentes grupos de emigrantes. O transcurso de meio século e uma gigantesca batalha constitucional, o lado rural e religioso da cultura, impôs sua vontade no lado urbano e secular.  Vitória decisiva para a direita religiosa, tão celebrada como a promulgação da 18a emenda da Constituição Americana em 1919, que culminou na Proibição de manufatura, transporte e venda de bebidas alcoólicas em todo País, revogada em 1933 em resposta a demandas da sociedade americana.  Ironicamente, ativistas pro-Proibição, também faziam parte do movimento do direito ao voto para mulheres. Em 1899, a sufragista Susan B. Anthony afirmou que “pôr o voto nas mãos das mulheres” era a maior esperança de Proibição.  

O debate sobre bebidas alcoólicas do século passado, é um paralelo fascinante com a controvérsia contemporânea sobre o abortamento, em ambos os casos, a batalha começou com grandes triunfos nos tribunais. Em 1973 a Suprema Corte Americana, determinou o direito constitucional ao aborto, em 1856, a mais alta corte de New York anulou uma lei de proibição, como uma violação ao direito a propriedade. Derrotas nos tribunais energizaram os proponentes de leis antiaborto e proibição a usar mobilização massiva, propaganda religiosa e estruturas político-partidárias conservadoras, enquanto o sucesso nos tribunais, relegaram vencedores à complacência. Gradualmente, o equilíbrio do poder político mudou, os lados antiaborto e proibição começaram a controlar legislaturas, tribunais estaduais e federais reorientando-se pausadamente a nova realidade política. O grande revés para o lado derrotado aconteceu: a Proibição de 1919 e a Decisão Dobbs em 2022.

Eleitores republicanos comprometidos a votar em 2022 e 2024, em protesto a inflação e o fechamento de escolas causados por covid-19, poderão ser surpreendidos em descobrir que o alcance das leis antiaborto que entenderam ser aplicáveis a outras pessoas, também podem atingi-las. Serão surpreendidos ao descobrir que, sem querer, provocarão a falência de clínicas de fertilização in vitro, porque tal procedimento pode resultar na destruição intencional de embriões fertilizados ou que um aborto espontâneo pode causar uma investigação policial. Conceito de condição de Pessoa de fetos e embriões, transformado em axiomático, potencialmente impõe todos os tipos de limites e restrições governamentais a mulheres grávidas, prelúdio de outras ações retroagindo os direitos adquiridos pelas mulheres ao longo do tempo.  Uma pesquisa recente, revelou que 55% dos americanos se identificam como pró-escolha, muitos podem não concordar no que querem, muitos mais concordam no que não querem. Como aconteceu com os antiproibicionistas, eles têm os números, só falta convertê-los em votos.

O que acontece nos Estados Unidos como sempre, é prontamente incrustado na cultura política e na formulação de políticas públicas brasileiras. Fenômeno acirrado pela convergência e oportunismo político de Jair Bolsonaro e Donald Trump. O Ministério da Saúde põe em questão o direito ao aborto legal no Brasil, forjando uma narrativa eleitoreira para agradar elementos mais retrógados da base político-partidária do Governo. Ignorando o fato de que a maioria dos brasileiros defende que o direito ao aborto legal seja mantido em que já é autorizado pela Legislação Brasileira. É deplorável a atitude de um ministério comandado por um profissional de saúde, ao questionar algo que é Lei, parte intrínseca dos direitos adquiridos da mulher e contraponto a narrativa piegas eleitoreira do Presidente. É hora de defendermos a laicidade das instituições da democracia brasileira, segundo George Santayana, “Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo.”

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores

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