Villa-Lobos e o metrônomo da vida…

Porta principal do Abrigo de Menores Jesus da Nazaré. Duas freiras esperavam ansiosamente a chegada do visitante. Tratava-se de um músico famoso, na cidade, para um evento no Teatro Santa Rosa. Juntamente com as religiosas, um homem de rosto corado, sobrancelhas espessas, corpo na posição conhecida como “descansar”, no linguajar militar. Sargento Lucena, o regente do coral da instituição. Havia juntado coragem suficiente para sugerir um convite ao grande maestro…

A guerra fria havia esquentado. A rivalidade entre os sistemas capitalista e comunista se transformava em um conflito militar de grandes proporções. A paz mundial estava ameaçada. Manchetes de jornais noticiavam combates sangrentos na Península Coreana. O ano era 1951.

O visitante chegou. Baixa estatura, vestido em um terno escuro. Charuto enfiado no canto da boca. Olhos cansados. Taciturno. Conversou baixinho com seus anfitriões. Ouviam atentamente. Música tocando no sistema de som da casa. Caminharam juntos em direção ao recinto do concerto. Entraram. Atmosfera de antecipação. Aplausos. A madre superiora tocou levemente nos lábios, com o dedo indicador. Silencio! Pediu ao visitante para sentar-se. O regente tomou posição em frente ao coral. Soprou em um objeto metálico, circular. Notas musicais. Sussurrando as ultimas instruções. Olhos atentos. Crianças acostumadas com a disciplina espartana da instituição. Gesto coletivo de reverência. O visitante respondeu com um sorriso, seguido de um gesto, mãos espalmadas para cima, como se dizendo: música maestro! Canção de ninar, ciranda, baião… Expressão serena no rosto, dedos acompanhando o ritmo de cada canção. Um metrônomo…

Inquieto, um menino de dez anos observava a cena do concerto. Sentado de pernas cruzadas no chão, perto da cadeira do visitante. Conhecia quase todo o repertório. Parte do seu cotidiano. Filho do regente. Seu pai queria que fosse músico…

Anos depois. Aula de violoncelo no conservatório de música. O professor ensaiava uma peça musical com uma cantora lírica. Cantilena da Bachianas Brasileiras No. 5. Adolescente, com as mãos curvadas no topo de um violoncelo. Embevecido com o desempenho dos artistas. Repetiram várias vezes os trechos cantados em “Vocalise”. Finalmente satisfeitos, concluíram o ensaio. Entusiasmados, continuaram a conversar sobre a música. Obra do compositor.

O regente ouviu atentamente o relato do filho. Feliz após seu primeiro dia de aula de violoncelo, no conservatório. Falou da peça musical que o professor estava ensaiado. Havia descoberto o nome do compositor. Heitor Villa-Lobos, o homem que havia visitado o abrigo de menores em 1951… Mais detalhes da visita. Seu pai falou que o maestro havia se incomodado com o volume do sistema de som da instituição. Pediu ao chegar: “… por favor, baixem o volume, música é para meditação.” Começo de uma viagem sem fim no mundo musical… Um coração, alma brasileira, pulsando com “… a cruel saudade que ri e chora!”, da Bachianas Brasileiras No. 5.

Heitor Villa-Lobos falou essas sabias palavras no seu discurso em João Pessoa-PB, em 1951,

“… O Brasil já tem uma forma geográfica de um coração. Todo Brasileiro tem esse coração. A Música vai de uma Alma à outra. Os pássaros conversam pela Música; eles têm coração. Tudo o que se sente na vida se sente no coração. O coração é o metrônomo da vida. E há muita gente na Humanidade que se esquece disso. Justamente o que mais precisa a Humanidade é de um metrônomo. Se houvesse alguém no mundo que pudesse colocar um metrônomo no ‘cimo da Terra’, talvez estivéssemos mais próximo da Paz. Por que se desentendem, vivem descompassados Raças e Povos? Porque não se lembram do metrônomo que guardam no peito: o coração…”

A guerra da Coréia continuou até 27 de Julho de 1953. Morreram cerca de três milhões e meio de pessoas. O tratado de paz ainda não foi assinado. A Península Coreana continua dividida em Norte e Sul…

João Pessoa, 1951