Villa-Lobos e o metrônomo da vida…

Na manhã abafada daquele ano de 1951, quando o mundo parecia à beira do abismo, com o conflito na Península Coreana incendiando manchetes, a cidade de João Pessoa experimentava um momento de quietude diferente. À porta do Abrigo de Menores Jesus da Nazaré, duas freiras esperavam ansiosas. Um visitante ilustre, um nome que reverberava nos salões musicais do Brasil, estava prestes a chegar. Ao lado delas, o Sargento Lucena, com sua postura militar inabalável, encarava o vazio, tentando reunir coragem. Era ele o regente do coral de crianças do abrigo, e havia ousado enviar um convite ao grande maestro, que agora estava em visita à cidade para um concerto no venerável Teatro Santa Rosa.

Finalmente, o visitante apareceu: Heitor Villa-Lobos, de terno escuro e charuto firmemente preso ao canto dos lábios. Seus olhos, fundos de cansaço e experiência, capturavam cada detalhe daquele espaço singelo, onde ecos de risadas infantis se misturavam ao som distante de canções no sistema de som da instituição. As religiosas, reverentes, conduziram-no por corredores estreitos até o salão onde o coral aguardava.

No salão, a tensão era palpável. Crianças dispostas em fileiras, rostos atentos, olhos brilhando à espera da batuta do regente. O Sargento Lucena, inflando o peito de orgulho e nervosismo, soprou o apito metálico que usava para afinar o grupo. Fez um sinal com a mão e, no silêncio absoluto, as vozes infantis ergueram-se em uma melodia doce, um baião envolto em nostalgia.

Sentado na primeira fila, Villa-Lobos, inicialmente taciturno, parecia absorver cada nota. O som das crianças o transportava para um Brasil profundo, um coração pulsante que ele tanto venerava. Com os dedos, acompanhava o ritmo, como se regesse de forma invisível, um maestro eterno em seu próprio compasso. Quando a última nota se dissipou no ar, ele sorriu, um gesto que pareceu iluminar o salão.

Ao lado do maestro, um menino de olhos vivos e pernas cruzadas no chão observava a cena com devoção. Era o filho do regente, que há muito tempo ouvia seu pai falar sobre o poder transformador da música. O menino conhecia quase todas aquelas melodias de cor; seu pai insistia que ele seguisse o caminho da música. Mal sabia que, anos depois, aquele instante ressoaria como um eco em sua vida.

Avançando no tempo, já adolescente, o rapaz sentava-se com as mãos curvadas sobre um violoncelo no conservatório. Em uma das salas, acompanhava o ensaio de uma cantora lírica que, junto ao professor, repetia trechos da “Cantilena” da Bachianas Brasileiras No. 5. A peça de Villa-Lobos parecia abrir uma janela para o infinito; os trechos de “Vocalise” eram como sussurros de um tempo que ele mal sabia ter sido parte de sua infância.

Naquela noite, ao retornar para casa, o jovem relatou ao pai a experiência mágica do dia. O regente ouviu com um sorriso orgulhoso, revelando então um detalhe que até então guardara para si: “Filho, o homem que ensaiava aquela canção no conservatório foi o mesmo que visitou o abrigo naquela manhã distante… Heitor Villa-Lobos.” E completou, como se estivesse revelando um segredo guardado na alma: “Ele pediu para baixar o volume do som, dizendo que música é para meditação…”.

A partir dali, o jovem percebeu que aquela era uma viagem sem volta pelo universo musical. Um mergulho que ligava coração e alma, ressoando com a mesma força que Villa-Lobos falara naquela tarde em João Pessoa:

“… O Brasil já tem uma forma geográfica de um coração. Todo brasileiro tem esse coração. A Música vai de uma Alma à outra. Os pássaros conversam pela Música; eles têm coração. Tudo o que se sente na vida se sente no coração. O coração é o metrônomo da vida…”.

E enquanto o mundo continuava a se despedaçar, com a guerra na Coreia e os milhões que pereciam sem um fim à vista, ali, naquela pequena cidade nordestina, um coração pulsava ao ritmo de uma melodia que unia almas. Talvez fosse o começo da paz que Villa-Lobos tanto desejava; um compasso que, se seguido, poderia harmonizar o mundo.

João Pessoa, 1951. Uma cidade onde, por um instante, o tempo parou e a música revelou sua magia: um coração que ainda hoje ecoa em cada acorde, em cada sonho embalado por canções de ninar.

Palmarí H. de Lucena