Clima tenso na sala de jantar. Discussão entre nossos anfitriões sobre a metáfora do queijo, no livro “Quem mexeu no meu queijo”, havia crescido até um ferrenho combate conjugal. Sentados próximos à mesa de jantar, o campo de batalha, éramos protagonistas silenciosos. O objeto da discórdia, nosso presente à esposa; estudante de relações humanas, fã despudorada de novelas de Sidney Sheldon e livros de auto-ajuda. O relacionamento estava agonizando há meses, desconstruído minuto a minuto. O foco da discórdia, se a discussão pudesse ser enfocada, era a impossibilidade de encontrar a saída do labirinto, perdidos no seu próprio labirinto. Decidimos dormir, frustrados…
Vozes na sala, três horas da manhã. Distante, conversa menos acirrada. Cautelosamente, esperamos por um momento. Saímos em direção à cozinha. Fisicamente exaustos e calados, sentados no mesmo sofá. Sorriram cordeiramente em nossa direção, talvez aliviados com a nossa presença. Aproveitamos a trégua. Propusemos: que tal um safári no Parque Nacional de Kruger? Partiríamos na madrugada do dia seguinte. Concordaram hesitantes. Pequena trégua, bateram em retirada para diferentes aposentos. Paz, finalmente…
Céu claro. Viajaríamos em uma picape cabine dupla. Sentaram-se no banco dianteiro, êle dirigindo. Ficamos inconfortávelmente instalados entre bagagens e uma geladeira portátil. Tínhamos mais de 240 quilômetros de estrada até a pequena cidade de Malelane, na África do Sul, próximo a uma das entradas do parque. Passados 80 quilômetros, silencio glacial. Sugerimos música, para quebrar a “monotonia da estrada”. Busca apressada, sem encontrar nada, salvo um disco esquecido no CD player do veículo. Chiado prolongado seguido de voz masculina, textura de xerez e tabaco, cantando uma canção chilena no estilo flamenco. “Te recuerda Amanda, la calle mojada, corriendo a la fábrica donde trabajaba Manuel”. Durante duas longas horas recordamos Amanda, o CD estava avariado…
Movíamos em alta velocidade em direção a Malelane… Lembranças súbitas da primeira vez que ouvimos a canção. Noite feliz, três décadas atrás. Mulher chamada Joanne Pottlitzer e amigos do grupo dirigido por ela, o Theater of Latin America, comemoravam o êxito da obra de Augusto Boal, Arena conta Zumbi. Cantor chileno enchendo o apartamento, iluminando e florescendo tudo, com música e letras maravilhosas de Victor Jara.
Anuncio brusco, chegamos! Vestidos em uniformes de trabalhadores de restaurante, seis mulheres e um homem, formavam uma linha em baixo de uma arvore frondosa. Cantando uma canção de boas vindas, no estilo do grupo Ladysmith Black Mambazo. Mãos estendidas em direção a porta do hotel. Sorriso amplo, seguido de um forte abraço, um homem nos esperava. O casal sorriu pela primeira vez…
Lugar bonito, bem cuidado. Os proprietários nos conduziram aos nossos aposentos. “Reservamos a suíte real para vocês dois”, anunciaram piscando um olho cúmplice. Coquetéis seriam servidos pontualmente às dezoito horas, no deck em frente do Rio Crocodilo, fronteira com o Kruger. Exploramos o hotel. Caminhamos o perímetro da propriedade, ouvindo o murmúrio do rio, tentando identificar os sons esparsos de aves e de animais. Imensa sensação de paz e ordem…
Ao pôr do sol, sentamos em um muro de pedra, próximo ao rio. Avistamos uma enorme manada de elefantes descendo o escarpamento, aproximavam-se da margem, os menores à frente ou ao lado das mães, todos tinham acesso à água. Reorganizamo-nos no pequeno espaço que tínhamos, como se imitássemos a simplicidade dos animais. Compromissos e arranjos silenciosos. Escapando dos nossos labirintos a procura de novos queijos… Os animais pareciam nos observar do outro lado do rio….
Partimos após o fim de semana. Falamos da vida, de coisas agradáveis, planos futuros, enfim… Novos labirintos. Haviam decidido dissolver o relacionamento. Três indivíduos e uma canção. ¿Te recuerdas Amanda?…
África do Sul 2004