Cidade do México, 19 de setembro de 1985, 07:19 horas da manhã. A população foi surpreendida por um terremoto, com uma magnitude de 8,1 graus na escala Ritcher. Os prédios do centro da cidade, cerca de um terço destruído; 10.000 mortos e 30.000 feridos, em 50 segundos. Energia, água e comunicações estavam totalmente comprometidas. Pouca ou nenhuma informação circulava. O Governo impôs um blecaute de 39 horas, em todos os noticiários, ninguém sabia de nada. Ninguém tinha uma resposta, nem o Governo. Ar poluído, cheiro de morte, medo e a tristeza mais triste desde a “Noche Triste” de Montezuma. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), no poder desde 1929, era o recurso de primeira instancia para toda e qualquer necessidade. O associativismo acontecia livremente, desde que fosse dentro do contexto partidário. “Ditadura perfeita”, nas palavras do escritor peruano Mario Vargas Llosa. O terremoto expôs as chagas profundas da armadura do sistema
Foram destruídas mais de 1.200 fábricas e ateliês de costura. As costureiras trabalhavam horas extras sem compensação, como se nenhuma lei trabalhista existisse. Contribuições previdenciárias e sindicais eram descontadas, nunca depositadas. Haviam sido retiradas mais de 150 costureiras mortas, em uma das fábricas. O resgate descobriu os patrões em ação, salvando equipamentos e demolindo o que restou das estruturas. Não pararam um minuto para investigar se alguma trabalhadora estava nos escombros. O mercado conspirava com o setor público. Indiferentes.
Reunidas em frente de uma fábrica em escombros, um grupo de mulheres. Cena típica do momento. Repetindo-se em quase todas as esquinas. Ataúdes de pinho empilhados na calçada. Altares improvisados com flores, copos de leite, sempre frescas, honravam a Nossa Senhora de Guadalupe. Umas preparavam comida na calçada, outras entrando e saindo nos escombros. Mãos calejadas, ensanguentadas. Procuravam suas companheiras. Tristeza, sofrimento, solidão. Não se ouvia música. O silencio, esta canção sem letra, falando de tudo…
O país havia chegado ao divisor de águas entre o patrimonialismo do PRI e o associativismo livre. O efeito da catástrofe foi além da destruição. Diante do povo, estava um governo ineficiente, corrupto, incapaz de organizar um programa de resgate e reconstrução. A cidadania renasceu, na tragédia das forças incontroláveis e inesperadas da natureza. Um ato de Deus, seguido por um ato do povo…
O domínio do PRI, seus agentes e correligionários, sob todos os aspectos da vida social e econômica do país era real, quase insuperável. Necessitavam conquistar novos espaços. Empoderar grupos da sociedade civil, para tomada e realização de ações. A Sociedad Cooperativa Mexicana de Confección “19 de Octubre”, formada pelas costureiras do bairro “Colonia Obrera”, foi um dos primeiros grupos. Apoiadas por advogados e organizações de direitos humanos, descobriram provas das práticas ilegais trabalhistas. Exumaram arquivos soterrados nos escombros. Localizaram fichas de produção e cartões de ponto. A cooperativa apresentou as evidências ao Tribunal do Trabalho, com uma demanda de indenização. Os proprietários alegaram insolvência, se diziam também vitimas do terremoto. Ofereceram o prédio da fábrica, com os equipamentos ainda operacionais, como compensação. A proposta foi aceita.
Elaboramos com as costureiras, planos para recuperar e viabilizar a fábrica. Asseguramos apoio financeiro não-reembolsável, com doações recebidas das comunidades católicas norte-americanas. Quase tudo estava resolvido. Um pequeno detalhe… As sócias estavam desempregadas. Faltava uma atividade econômica para sobreviverem até a inauguração da fábrica. As costureiras apresentaram uma alternativa. Artistas plásticos mexicanos foram mobilizados, para desenhar bonecas. Todas se chamariam Victoria. Seriam fabricadas pela cooperativa e vendidas ao público, para angariar dinheiro. As bonecas foram exibidas pela primeira vez no Museu Carillo Gil, na Cidade do México, no dia 14 de Dezembro de 1985.
A fábrica começou a funcionar em Abril de 1986, fabricando jeans para Yves Saint-Laurent.
Regressamos ao México em 1996. Missão de apoio técnico e logístico da ONU, a observação eleitoral cidadã. Uma coligação de quinhentas organizações, representando todos os segmentos da sociedade civil mexicana, nossa contraparte durante o período eleitoral. Entre as organizações presentes, as muitas mães da boneca chamada Victoria…
México 1985