Um lugar perigoso para os fracos do coração…

A “limpeza étnica” promovida pelo ditador Mobuto havia provocado um deslocamento massivo da população das províncias de Shaba e Kivu Norte, no Zaire. Milhares de mortos e feridos; estupros e execuções extrajudiciais. Crise humanitária. Após semanas de negociações, o governo havia permitido a entrada e distribuição de ajuda humanitária às vitimas do conflito. Estávamos em Gana.

Embarcamos com destino a Kinshasa, no Zaire, uma semana depois, com duas horas de atraso. A conexão já havia partido, ao chegarmos em Lagos. Trânsito no Aeroporto Internacional Murtala Muhammed. Ambiente hostil, às vezes perigoso. Corrupção, em todas as variedades possíveis, era mencionada constantemente em alertas e artigos na imprensa. As palavras “dash” ou “baksheesh” resolviam todos os problemas que pareciam insolúveis, minutos antes. Ambas significavam propina…

Guichê da emigração. Oficial examinou o passaporte, nunca olhando em nossa direção. “Por favor, tome um assento, seus papeis não estão em ordem”. Despareceu pela porta do pequeno escritório. Três horas de espera. Paciência, não adianta estrebuchar, ninguém vence aqui. Sabíamos do fenômeno conhecido como “wawa”, abreviatura de “West África wins again”, a África do Oeste vence de novo. Anoitecia…

Ocupamos-nos com a leitura do livro “In Patagonia”, do escritor inglês Bruce Chatwin. Mestre da literatura odepórica. Estávamos totalmente absorvidos, com uma passagem extremamente hilária. Gargalhadas, gargalhadas. O oficial voltou. Batendo o passaporte na palma da mão. Informou-nos asperamente que estaríamos ilegal no país, a partir da meia noite. A próxima conexão partia em 48 horas. Outra acusação: “desrespeito às autoridades”. As gargalhadas… Uma multa de trezentos dólares. Protestamos. “A Patagônia não é algo engraçado”, declarou, após uma leitura cursória. Pagamos a multa. Permitiram nosso pernoite em um hotel. Havíamos cooperado com as autoridades. Entregariam o recibo, pela manhã, para assegurar nosso retorno e deportação… Wawa!

Caos fora do terminal. Vários taxistas competindo por nossa bagagem. Pediam cento e cinqüenta dólares para levar-nos ao hotel. Alguém ofereceu uma “tarifa especial”, cem dólares. Pagamento adiantado. Em cinco minutos, estávamos no lobby do hotel. “Esqueceram minha propina”, reclamou o taxista. Demandou cinquenta dólares.

Fomos informados que o hotel estava lotado. Explicamos nossa situação. Ofereceram uma alternativa, um sofá na parte posterior do lobby, por meia diária. Demandamos um quarto single. Duas horas de espera. Nossa vez chegou. Quarto pequeno, cama ainda morna. O casal de amantes, inebriados, eram os ex-ocupantes. Por segurança, deitamos no colchão. Dormimos. O recepcionista nos acordou. Haviam cometido um erro. Nosso quarto estava reservado para outras pessoas, pagamento adiantado. Deram-nos quinze minutos para fazer o check-out. Desculparam-se pelo equivoco. Ofereceram um sofá para dormir, grátis. Não haveria ressarcimento. Amanhecia…

Apresentamo-nos cedo na Emigração. Ninguém havia feito um relatório sobre nossa deportação ou entregado um recibo. Examinaram o passaporte. Tudo em ordem: “no problem”. Podíamos permanecer em trânsito até o próximo vôo. Nenhum problema com a conexão para Kinshasa. Basta! Decidimos partir no primeiro vôo para Acra, Gana.

Desordem no balcão da Ghana Airways. Excesso de passageiros e bagagem. Uma mulher obesa, vestida em pano africano, notou nosso desespero. Confidenciou que podia conseguir um assento, por trezentos e cinquenta dólares. Encarregar-se-ia de tudo, check-in e bagagem. Entregaria-nos a passagem e uma encomenda para sua filha, ao embarcarmos. Um televisor e um saco plástico com várias caixas de sabão em pó OMO; sabonete Rexona e sardinhas. Esperando na entrada da aeronave. Nossa bagagem de mão…

A filha da nossa benfeitora esperava-nos na alfândega, em Acra. Perguntou com um sorriso de 10.000 megawatts, se podíamos deixá-la em casa. Estamos sem transporte, descartamos. Havíamos vencido uma pequena batalha. Wawa…

Nigéria 1981