Um beco, um padre

Um beco, um padre

Tentando encontrar lugares que já não existiam, nossos olhos viajando ladeira abaixo à procura dos meandros da nossa história. Estávamos na borda da escadaria do beco da Faculdade de Direito, o nome genérico usando por décadas. Evidenciado pela falta de preservação e abandono, o descaso do poder público e os perigos escondidos na penumbra da noite. Vizinhos ilustres do local sinônimo de marginalia, prostituição e vendas de drogas: a Praça dos Três Poderes, o Palácio do Governo, a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Justiça. Tombados e abandonados. Parede da antiga faculdade maculada por geradores de eletricidade e a rede elétrica; calçamento em péssimas condições, abrigando carros de deputados e vendedores ambulantes. Museu ao ar livre, pragas e decadência urbana expostas, visitação a qualquer hora, entrada franca. Bemvindo ao Centro Histórico.

Retângulo formado pelas ruas paralelas da ladeira e duas avenidas diferenciadas, perímetro da opulência e vida econômica da cidade, abrigando fileiras de casas pequenas, bares e comércios de aparência modesta. Conhecida como Manchúria, a zona do Baixo Meretrício, tinha uma vida quase normal durante as horas do dia. Famílias caminhando tranquilamente, fazendo compras, levando as crianças para a escola ou evitando as calçadas movimentadas do comércio. Portas fechadas, pequenas janelas e campainhas os únicos meios de comunicação. Entendimento cordial entre as donas de prostíbulos e as autoridades. Tempos modernos, o progresso prometido nunca chegou. Imóveis abandonados, trânsito caótico e desordem em todas suas manifestações, vícios urbanos substituindo os vícios da carne.

Descobrimos, sessenta anos depois de ter morado no Centro Histórico, que o beco atrás de Faculdade de Direito tinha um nome. Chamava-se Rua Gabriel Malagrida, em homenagem a um padre jesuíta que vivera no Nordeste no século XVIII. Propagando a fé verdadeira e reabilitando mulheres vítimas de exploração, fundou abrigos para mulheres que abandonaram a prostituição. Intriga de palácio e suas críticas à Igreja resultaram em acusação de heresia pelo Tribunal do Santo Oficio de Lisboa. Condenado ao garrote e à fogueira, foi executado em um auto-de-fé no Rocio. Estaremos negado a humanidade, martírio, a busca da justiça e a dignidade do Padre Malagrida se permitirmos, também, a morte agonizante do logradouro.

Palmarí H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores