Um Banco de Caprinos no Deserto do Quênia

Um Banco de Caprinos no Deserto do Quênia

Despertamos, certa manhã, com a lembrança suave de um velho amigo colombiano, perdido nas dobras do tempo. Padre Leonel. Conhecemo-lo em Nairóbi, 1982, quando os dias corriam entre planilhas de ajuda humanitária e silêncios africanos. Ele vinha de Marsabit, a 560 quilômetros dali — pedaço seco do Quênia onde o vento trazia pó e preces.

Surgia sem aviso, sempre em urgência: um pedido de soro, sacos de farinha, peças para o poço. Falava pouco, não se demorava. Antes de partir, parava diante de um pôster na parede — Dom Helder em letras grandes: “Quando dou comida aos pobres, sou santo. Quando pergunto por que os pobres têm fome, sou comunista.” A frase o fazia sorrir com a timidez de menino. Talvez ali estivesse o resumo de sua missão: não um santo, tampouco um revolucionário — apenas alguém em busca de reconciliação.

Num desses encontros, trouxe um pedido inusitado: precisava de fundos para comprar… caprinos. Silêncio. Olhares trocados. Insistimos por justificativas. Ele explicou com a calma de quem conhece a alma dos conflitos: queria criar um banco de cabras, um fundo rotativo para doações às famílias das noviças ameaçadas por dotes tribais. Os anciãos, presos à cultura e ao machismo nômade, ofereciam animais para “comprar” meninas em formação religiosa. Pobres demais para recusar, as famílias hesitavam.

Resgatar com dinheiro parecia insustentável. Dissemos isso. Mas Padre Leonel não falava de resgate — falava de dignidade. Sua proposta: comprar caprinos e emprestá-los como garantia simbólica às famílias das noviças. Um cheque de futuro, um escudo contra o casamento forçado. Conselhos comunais cuidariam dos empréstimos, dos rebanhos, da paz. Era simples, como só as soluções verdadeiras são.

Com aquele gesto, aprendemos mais do que em muitos relatórios. Ele nos mostrou que paz e desenvolvimento não nascem de discursos, mas de ações que tocam o cotidiano. Que não há democracia possível sem justiça às mulheres esquecidas, sem respeito aos silenciados da terra.

Batemos o martelo. Com um cheque e um brilho no olhar, Padre Leonel partiu para fundar o primeiro banco do mundo capitalizado com a moeda mais sólida de Marsabit: cabras. E com elas, plantou esperança onde havia apenas poeira e resignação.

Por Palmarí H. de Lucena