“… Trate-me por Ishmael. Há alguns anos, não importa quantos ao certo, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas…” Também queria cruzar os mares, como o personagem de Moby Dick. As palavras agradavam meus ouvidos. Sempre as repetia em Inglês. Pondo certa distancia entre o lugar em que estava e o lugar em que queria estar. Um mantra. A única parte que não me agradava era o final da última frase. Eliminei “… das águas…”
O Atlântico Norte me fascinava. Não estava seguro da razão. Talvez algo especial que havia aprendido com Dona Noêmi Marinho, a professora de geografia, ou nas Vinte Mil Léguas Submarinas de Julio Verne. Não importava quem havia sido, nem quando. Atravessamos juntos todos os oceanos. Viagens de Leif Erickson, e do seu pai, Erik, o ruivo. Capitão Nemo. Monstros marinhos. Sereias. Ilhas desconhecidas. Terras exóticas… Sempre em terra firme, com a roupa seca. Sem dar um passo.
Manhattan, 1972. Uma brincadeira entre colegas de trabalho, entediados com a burocracia. Um desafio pessoal. Aceitei. Vendaram meus olhos. Um empurrão gentil dirigindo-me ao mapa mundi na parede. A ponta do dedo indicador tocou na Groenlândia. Terra! Iniciamos os preparativos da viagem, imediatamente. Contatamos agencias de viagens, companhias de aviação. Impossível viajar à terra verde dos Vikings. “… Que tal a Islândia?…” Alguém perguntou. “… É quase a mesma coisa, fica perto de lá…” Concordamos. Promessa feita, promessa cumprida. Viajaria para Reykjavík na semana seguinte. Em busca de algo que me interessasse em um lugar pouco interessante, aparentemente. Onde as noites não existem no verão…
Passaria a primeira semana em Reykjavík. Comecei minha visita pelos museus e galerias de arte. Excelentes coleções de arte nórdica. Edifícios com arquitetura arrojada, talvez um pouco minimalista. Confortáveis. Lugar fácil de flanar. Limpo. Povo educado. Cheirando a civilização. O relógio mostrou que era noite. Fui ao pub do hotel. Praticamente vazio. Um americano solitário. Conversamos amigavelmente. Parecia frustrado. Falou que estava escrevendo algo sobre o sistema penitenciário. Na sua primeira visita, final de semana, encontrou os portões dos presídios abertos. Os presidiários só regressariam na segunda-feira. O garçom permanecia desatento à conversa. Falou baixinho, “… não servimos bebidas alcoólicas depois das 22 horas. Só nas sextas-feiras e sábados…” era domingo.
Sexta-feira chegou. Uma manhã agradável passeando pela cidade. Um banho relaxante na piscina térmica, 40°C. Bacalhau fresco regado com umas tantas taças de Chablis, para o almoço. Recuperando-me das surpresas do dia. O Presidente era um dos banhistas na piscina. Sozinho. Um homem comum desfrutando o sol do verão. Descobri também que a Islândia era o único país do mundo onde a população inteira acreditava em gnomos.
Pronto para enfrentar a noite de Reykjavík. Uma lista de bares e clubes na mão, cortesia do jornalista americano. Fiquei no primeiro. Uma banda de rock and roll tocava freneticamente. Todos bebiam como se a noite fosse a ultima sexta-feira das suas vidas. Aquavit queimando minha garganta. Obstruía qualquer tentativa de pensamento racional. Convidei alguém para dançar. Chamava-se Sigdur, a filha de Benedito. Movemo-nos involuntariamente para o miolo do dancing. Ficamos lá. Prisioneiros da multidão inebriada que nos cercava. Gente alta, energética. Péssimos dançarinos… A música parou. Fim de festa. Ofereci-me para levar Sigdur até à casa. Não respondeu logo. Olhou para mim como se estivesse bêbado ou talvez maluco. Estava… Falou sobriamente, “… não dirigimos quando bebemos…”. Os carros ficam estacionados; as chaves na ignição.
Caminharíamos em direção da sua casa, cerca de cinco quilômetros do clube. Juntamos-nos a uma multidão de réveilers. Cantavam músicas profanas ou heróicas. Outros solfejavam algo irreconhecível. Talvez uma tentativa de individualidade? Um pensamento aleatório e uma pergunta: temos algum presidiário aqui? “Não”, respondeu Sigdur. “Eles permanecem em casa durante o final da semana. Desfrutam de suas famílias…” Alguém pediu que eu cantasse algo do Brasil. “… Você pensa que cachaça é água?…”. Traduzimos a letra, sucesso total. O sol brilhava no céu. Dia ou noite. Não importava…
Islândia 1972
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores