Folclore, palavra mágica na concha acústica que chamávamos de nossa casa. Cantavam, dançavam, declamavam. Dentro de alpargatas, marcando o ritmo, pés calejados e precariamente espremidos. Menestréis de rua; índios africanos, cangaceiros e marinheiros da nau. Conviviam juntos, o audacioso, o imaginário e o absurdo. Poetas loucos; loucos poetas. Todos bem embrulhados e atados com o barbante da cultura do povo. A realidade se perdia entre nuvens movidas por cânticos e lamentos de terras distantes. Fragrâncias da África misturando-se com o cheiro de terra úmida da Mata Atlântica. Partimos, voltamos, partimos. Moto perpétuo. Vida girando ao redor de si própria, diminuindo em cada giro. Convergindo no infinito possível das nossas imaginações, pai e filho desfrutando suas vidas assimétricas. Passaram-se os anos. Cada visita, novas descobertas. […]Quero saber o que seus olhos viram desta vez, começávamos assim. Instalado confortavelmente numa cadeira de balanço, mãos cruzadas sobrea a barriga. Olhos semiabertos, duas réstias de luz brilhando intensamente. O mundo ficava pequeno. Tenente Lucena, Grand Vizir do pequeno terraço. Guardião da porta, Sublime Porta do popular e do genérico. Artistas, ex-presidiários, meninos de rua, músicos folclóricos e de bandas de música, torcedores do Flamengo, cegos, surdos e mudos. Seu Belarmino, negro, pobre e doente, factótum, por falta de melhor designação, testemunhava as histórias com respeitosa distância. Algo havia mudado. Rosto e corpo mostravam a verdade. A verdade que ninguém queria aceitar. A sigla CA, duas letras do bê-á-bá explicavam tudo, sem a cadência melódica de vozes infantis. Conversamos sobre as sutilezas, malefícios e limitações impostas pela doença. Ira e tristeza superavam outros sentimentos. Mudança brusca de tópico: […] E a África, meu filho? Conversamos sobre nosso primeiro ano em Gana. Animado, solfejando baixinho, sons da nossa herança musical africana. […] No próximo ano em Acra!Prometemos.
Finalmente a África. Música senegalesa tocada soberbamente em um instrumento de cordas, chamado de korá, enchia a noite. Orgulhava-se de ser músico, poder comunicar-se com pessoas de todas as raças e lugares. O pentagrama de Guido d’Arezzo não precisava de dicionário ou intérpretes. Estávamos em Lomé, Togo. Hospedados no Hotel 2 du Février, suítes presidenciais luxuosas. Eyadéma, o ditador, construiu o hotel na esperança de que Lomé fosse designada a sede da OAU. Escolheram outra cidade. Sentíamo-nos presidenciáveis à cinquenta dólares por dia.
Telefonema urgente da segurança do hotel. Detiveram um homem branco agindo suspeitosamente no centro de convenções. Tinha o nosso sobrenome, Lucena. Penetrou indevidamente à conferência de um grupo de árabes e africanos, que compunham uma frente de vigilância e confrontação contra o colonialismo, o imperialismo, o capitalismo, o racismo e outros males. Gaddafi, proeminente entre os participantes.
Chegamos ao lobby, o rosto pálido do Tenente Lucena perdido em uma floresta de óculos escuros. Mulheres em camuflagem, metralhadoras a tiracolo. Guarda-costas de todos os tamanhos e indumentários. O homem em comando exigiu uma explicação. […] Assumi que o evento era um maracatu. Música alegre. Entrei na sala, pareciam ocupados. Homem vestido em um robe e turbante discursava. Provavelmente alguém importante. Repleto de africanos vestidos em trajes coloridos [,,,]. Ouvimos cuidadosamente, decidimos não traduzir. Improvisamos algo como senilidade do suspeito; falta de conhecimento do idioma. Tentando mitigar sua indiscrição. Desculpa aceita com desconfiança. Liberado sob a nossa tutela, proibido de transitar pelo lobby sem acompanhante.
Cenas frenéticas da libertação de Trípoli. Pessoas de todos os gêneros, tamanhos e idades comemorando o fim da ditadura. Tenente Lucena, o maracatu de Gaddafi terminou…