Bamako, capital do Mali. Refúgio para expatriados, onde a África e a Europa se tocam de forma desconfortável. Sentados em um bistrô francês que, mais que um local, parecia um cenário de filme decadente. O proprietário, europeu de traços endurecidos, trajava o clássico caqui militar, exibindo manchas de suor que, para ele, eram talvez medalhas de alguma guerra esquecida. Ao lado, sua companheira indochinesa, reminiscência de um passado colonial da França, oferecia sorrisos quase autômatos. No rádio, música congolesa quebrava a monotonia. Uma concessão à África que ele preferia ignorar.
Na manhã seguinte, deixamos Bamako rumo ao País Dogon. Partimos em direção às escarpas de Bandiagara, uma região mística onde os Dogon, povo ancestral, habitam há séculos. Em cada aldeia, a arquitetura parecia enraizada na rocha, como se cada casa fosse parte da própria montanha. Ali, a vida fluía em um ritmo diferente, marcado pelas sombras do “togu-na”, a casa da palavra. Um espaço sagrado onde os anciões se reuniam. O teto baixo os obrigava a se curvar — uma metáfora física para o respeito mútuo e a necessidade de diálogo pacífico.
Nosso fascínio pelo povo Dogon não era recente. Havíamos assistido a um documentário que capturava sua arte, a magia de suas máscaras e as celebrações cíclicas que regiam suas vidas. Inspiradores de Picasso, suas formas e cores haviam tocado até mesmo Matisse. E havia algo mais, algo que nos atraía como um segredo sussurrado: o conhecimento estelar que os Dogon possuíam sobre Sirius, a estrela mais brilhante do céu. Sem telescópios, sem tecnologia moderna, sabiam, há séculos, da existência de Sirius B, uma anã branca invisível a olho nu, e de seus ciclos orbitais. Como? Apenas os sacerdotes conheciam a resposta, transmitida através de gerações por vias secretas e orais.
Na cosmogonia Dogon, tudo começara com Amma, uma divindade que, flutuando em um “ovo dourado”, criara a Terra. E então vieram os Nommo, seres anfíbios, os “mestres” que trouxeram o conhecimento. Essas histórias, misto de mito e ciência, se revelavam nas cerimônias de Dama, onde o uso de mais de 65 máscaras diferentes narrava a transição das almas para o reino dos antepassados. Durante seis dias, espíritos mascarados dançavam, promovendo a expulsão das almas que haviam falecido desde o último ciclo. Cada movimento, cada cor, tinha um significado profundo — um código complexo que só os iniciados podiam decifrar.
Nossa jornada pelas escarpas começou cedo, às cinco da manhã, descendo a trilha íngreme até Sanga, guiados pelo filho do chefe. À medida que nos aproximávamos da aldeia de Tereli, nosso destino final, éramos saudados por cada pessoa que cruzava nosso caminho. Perguntas calorosas sobre nossa família, nossa terra natal. O senso de comunidade se fazia presente em cada olhar, em cada gesto.
À noite, fomos convidados para a “togu-na”. Lá, o chefe nos aguardava, curioso sobre o homem branco que vinha de uma terra distante chamada Brasil. “Griot”, disseram. Contador de histórias. Primeiro, as saudações. Depois, o assunto que mais lhes interessava: Pelé. “Le Roi”, diziam com reverência. Queriam saber de suas jogadas, seus gols impossíveis. Pelé era um mito que unia continentes, um elo entre África e Brasil. Desprovidos de imagens televisivas, ouviam com fascinação nossas descrições, reais ou inventadas. Repetiam os gols narrados com entusiasmo, exigindo que os recontássemos, sempre mais fantásticos. Era o poder da palavra, o que eles mais valorizavam.
Passamos dias explorando aldeias, recebidos sempre com um calor que só os povos ancestrais sabem oferecer. Crianças nos seguiam, chutando bolas improvisadas — latas, pedras, qualquer coisa que pudesse rolar. Partimos, finalmente, de volta à nossa terra. Deixamos para trás as escarpas, mas levamos conosco os segredos e o mistério dos Dogon.
Anos depois, de volta à orla do Cabo Branco, o barulho das festas modernas nos envolvia. Forró, pagode, axé… Tudo competindo por atenção, enquanto o oceano era ignorado pelas multidões. Olhávamos para o céu, em busca de Sirius, a companheira do povo Dogon. Lá estava ela, brilhando no firmamento. Um símbolo que poucos aqui reconheciam. Pensamos na “togu-na” e no poder da palavra que une, que pacifica. “Por que não temos a nossa casa da palavra?”, perguntamos. Sentados sob o céu de Sirius, talvez encontrássemos as respostas para a nossa própria inquietação.
Palmarí H. de Lucena – Mali, 1975