A viagem começou com o sussurro do shinkansen — flecha de aço e silêncio — deslizando pelos trilhos do Japão com a leveza de um ideograma bem traçado. Pelas janelas largas, os arrozais se diluíam como aquarelas em fuga, vilarejos piscavam como lembranças e montanhas surgiam como pensamentos apressados. Dentro do vagão, o tempo parecia se curvar. No conforto cerimonial dos assentos, florescia uma emoção serena: a de estar a caminho de um Japão profundo — onde beleza e silêncio não competem, apenas coexistem.
Chegamos a Tóquio em plena primavera, entre fusos e flores. Em vez do turbilhão da metrópole, escolhemos o gesto da pausa. No Parque Ueno, duas cerejeiras arqueavam os galhos como portais de boas-vindas. Sentados à sombra, vimos famílias em piqueniques, crianças correndo entre lençóis, casais fotografando o efêmero com reverência. Ali, o tempo recuava alguns passos para nos deixar chegar com calma. Seguimos, então, rumo a Ginza, onde a luz veste silêncio e os passos desaceleram entre fachadas elegantes como haicais noturnos. Em Shibuya, a multidão atravessa em harmonia o cruzamento mais célebre do mundo — um balé urbano regido por um tambor invisível. Mas é ao lado da estação que o tempo para, diante de Hachikō, o cão de bronze que persiste como monumento à lealdade. Seu olhar imutável atravessa gerações com a mesma delicadeza do gesto que espera.
De Ginza à Omotesandō, fomos conduzidos por uma linha de árvores que sugerem contemplação. Cafés de balcões claros, vitrines como haicais flutuantes, tudo ali convida à lentidão — o andar do vento em meias. Paris tem seu Champs-Élysées, mas Tóquio, mais íntima, se revela nessa avenida discreta. Já em Asakusa, a cidade exala espiritualidade e cotidiano na mesma medida. Entre incensos, bolinhos de arroz e lojas centenárias, a rua Nakamise nos levou até o Templo Sensō-ji, onde o passado repousa sem pressa. E dali, a Tokyo Skytree ergue-se como agulha que costura céu e tecnologia. Serena, precisa, quase etérea, ela não fere o horizonte — apenas o toca.
Encerramos o dia nos Jardins do Palácio Imperial, onde o som predominante é o da própria respiração. Entre pinheiros esculpidos e pedras silenciosas, aprendemos que a ordem não se impõe — é sentida. Tóquio se revelou, então, como um arquipélago de mundos, onde cada bairro é uma estação da alma e cada gesto discreto é reverência ao todo.
Seguimos para Kyoto com o coração entre passado e presente. À medida que o trem Hikari ganhava velocidade, minha memória fazia o caminho inverso até o inverno de 1969, quando pisei o Japão pela primeira vez. Carregava nos braços minha filha Michiko, um broto de seis meses que dormia entre o calor do meu corpo e a serenidade da paisagem. Caminhávamos juntos ao redor do Templo Dourado, onde a luz fria do inverno acariciava os contornos dourados com a bênção do silêncio. Chorei — não por tristeza, mas por reverência. E naquele momento, plantei uma promessa: a de que aquela vida nos meus braços cresceria como um pinheiro, firme e duradouro.
Décadas depois, ali estava eu de novo, diante do Kinkakuji, entre a mesma quietude e o mesmo espelho d’água. Por quinhentos ienes, recebemos muito mais que um ingresso: ganhamos um instante suspenso entre o agora e o antes. Seguimos então para Arashiyama, onde a floresta de bambus nos recebeu com a solenidade de um templo natural. Cada passo ecoava como prece, cada feixe de luz entre os galhos parecia bordar o chão com sombra e contemplação. No Templo Tenryū-ji, a beleza se escondia nas curvas do jardim, entre pedra, musgo e lago, revelando-se apenas a quem soubesse escutar. Ao cruzar a ponte Togetsukyō, com o rio correndo sob nossos pés e as montanhas em flor ao fundo, sentimos uma alegria leve — como se o tempo nos concedesse um intervalo.
No fim da tarde, caminhamos sob os milhares de torii vermelhos de Fushimi Inari Taisha, como se atravessássemos a espinha dorsal da alma japonesa. A cada passo, uma entrega silenciosa. Ao pé do primeiro torii, as lágrimas voltaram. Enquanto turistas subiam as escadarias, eu permaneci. Por um instante, tudo era 1969 outra vez. A menina nos meus braços. O templo. O futuro em repouso.
No dia seguinte, Nara nos esperava com a serenidade de um monge. A antiga capital do Japão não é apenas um lugar, mas um portal onde o presente se curva diante do espírito ancestral. No Todaiji, diante do Grande Buda de bronze, senti a vibração de uma fé que atravessa séculos. A luz que emanava de seu rosto parecia tátil — como se ali repousasse a alma de uma nação em formação. E no Kasuga Taisha, o xintoísmo florescia em lanternas de pedra e no caminhar solene dos cervos sagrados, mensageiros dos deuses que se movem entre os homens com dignidade. Entre monges, jardins e silêncios, Nara nos ensinava a andar devagar e a ver mais fundo.
Já em Gion, o entardecer se dissolvia em tons de âmbar e mel. As lanternas se acendiam como confidências e as ruas de pedra sussurravam histórias de encontros breves e eternos. Entre sombras, vislumbrei uma figura etérea — talvez uma maiko, talvez o fantasma delicado de um tempo que ali ainda habita. Não importa. O que ficou foi a sensação de ter tocado o invisível. O Japão não é apenas paisagem ou cultura. É gesto contido, tempo medido, ausência que fala.
A paisagem seguinte foi Kawaguchiko. A promessa era solene: o Monte Fuji refletido nas águas calmas do lago. Mas a beleza, quando verdadeira, não se apressa. A chuva do primeiro dia e o nevoeiro do segundo cobriram a montanha de silêncio. Caminhamos assim mesmo, transformando o entorno do lago em templo provisório. Visitamos o Museu das Gemas e ali o Brasil ressurgiu, brilhando sob vitrines. Descobrimos que quase 80% das pedras expostas — rubis, águas-marinhas, esmeraldas — vinham de nosso país. Mas foi a turmalina Paraíba, com sua cor de mar sonhado, que nos tirou o fôlego.
A bordo da linha vermelha, paramos nos pontos 5 e 20 — os melhores para ver o Fuji, quando ele permite. No nosso caso, molduras vazias. Até que, ao fim da tarde, a caminho da estação, ele surgiu. O cume nevado emergiu das nuvens como quem agradece aos que esperam sem exigir. Fotografamos, sim, mas o que os olhos captam, o coração eterniza.
No ônibus rumo a Mishima, o Fuji-Q Highland surgiu como um contraste: parque de aço, cor e vertigem. Montanhas-russas dançavam aos pés do gigante adormecido. Entre elas, o Fujiyama, a Eejanaika, a vertiginosa Takabisha. Lá estava também o EVA-01, guardião do universo de Evangelion. Mas tudo isso — os gritos, a velocidade, a fantasia — desaparecia diante da montanha, que seguia ali, em silêncio, reinando sem esforço.
Kanazawa nos aguardava como um poema. No Jardim Kenroku-en, as cerejeiras em flor formavam um corredor suspenso de contemplação. Dentro do jardim, o tempo esquecia a pressa. Os espelhos d’água refletiam o céu com reverência, e as carpas navegavam como se meditassem. Ali, a beleza não gritava — sussurrava. Em cada doce de folha de ouro, em cada cerâmica trabalhada com paciência, havia uma celebração do ofício. Kanazawa é lugar onde o tempo se curva, e caminhar sob pétalas é agradecer à vida.
Mas foi em Hiroshima que a viagem atingiu sua nota mais grave. No Parque da Paz, o Domo Atômico testemunha em aço retorcido a devastação. O relógio permanece parado às 8h15. Dentro do museu, objetos mutilados narram a tragédia sem precisar de palavras. O menino do triciclo, o uniforme chamuscado, as sombras no granito. Sob o arco do cenotáfio, um idoso murmura nomes. Ao seu redor, turistas distraídos com selfies. Hiroshima não é apenas passado. É advertência.
O Castelo de Hiroshima, também conhecido como Castelo da Carpa, nasceu como símbolo de poder no Japão feudal, mas tornou-se, com o tempo e a tragédia, um santuário da memória. Destruído pela bomba atômica em 1945, foi reconstruído como testemunho silencioso da resistência cultural e da capacidade humana de renascer. Entre telhados curvos e águas refletidas, ele não guarda apenas pedra e história — guarda um espírito que insiste em florescer mesmo após o fogo. Hoje, não é fortaleza de guerra, mas de paz. Um poema de madeira reerguido onde o passado se curva diante da esperança.
No Jardim Shukkeien, entre carpas e pontes curvas, a vida insiste. Mas sob as águas, ainda se ouve o eco do fogo. Hiroshima pergunta: quantas sombras ainda serão necessárias para que o mundo aprenda? A flor sobrevive ao espectro, mas só enquanto houver memória.
Ao final, o Japão nos atravessou como o próprio shinkansen: preciso, silencioso, irreversível. E quando voltamos, não trouxemos souvenirs — mas um novo olhar. Um olhar que aprendeu a ver beleza no que se despede com graça, no que floresce mesmo em silêncio. Porque ali, entre templos e trilhos, entendemos que há algo de sagrado no instante que passa. No gesto contido. No chá que aquece mais do que a pele. E voltamos diferentes — não pela distância, mas pela delicadeza que ficou impregnada na pele, como o perfume breve das flores de cerejeira. O Japão não nos levou; nos ensinou a ficar. Em nós mesmos. No agora. No que não precisa durar para ser eterno.
Por Palmarí H. de Lucena, Abril de 2025