Escrever sobre uma amizade que atravessa mais de meio século é uma tarefa complexa, e essas linhas tentam capturar um pouco dessa jornada. Às vezes, estávamos distantes de tudo que nos unia por parentesco, em lugares isolados, esquecidos pelo mundo. Dois amigos, como linhas paralelas, buscando o infinito.
Tudo começou em 1949, um ano feliz. Minha primeira irmã havia chegado, e tínhamos um rádio novo. A mistura de música e choro infantil criava uma sinfonia doméstica. Nosso primo, Sivuca, o “diabo louro da sanfona”, já era um dos favoritos do rádio. Ah, Vassourinhas, quantas vezes te ouvimos… Um dia, ele apareceu na nossa porta, com a sanfona a tiracolo. “Gazo”, diferente do que imaginávamos, talvez até um pouco tímido. Depois do jantar, tirou a sanfona do estojo e começou a tocar. Seus dedos deslizavam no teclado e nos baixos com a leveza de colibris. As pessoas se amontoavam nas janelas, na rua, em silêncio, apenas ouvindo. Ele fechou a sanfona tão rápido quanto a abriu. Aplausos, risos, abraços. Sivuca havia ladrilhado nossa rua com pedrinhas de brilhantes.
Aparecia e desaparecia subitamente, deixando apenas rastros de música. A tristeza nordestina de “Adeus Maria Fulô” ecoava nas despedidas de João e Maria. Em 1958, partiu para a Europa com o grupo “Os Brasileiros”. A imprensa relatava apresentações triunfais. Em 1962, vimos seu nome no cartaz do filme francês O Diabo e os Dez Mandamentos. Lá estava ele, tocando sanfona, música para os anjos, para os amantes, para todos nós. Meses depois, abriu o show de Marlene Dietrich em Estocolmo e, logo após, ela cantou “Luar do Sertão” em português, no Copacabana Palace.
Conversamos longamente sobre a falta de liberdade artística no Brasil e suas experiências na Europa. Em 1964, o clima no Recife era asfixiante. Passaram-se semanas, até que, em uma festa na casa de um amigo americano, ele decidiu aceitar um convite da cantora Carmen Costa para acompanhá-la aos Estados Unidos. Marcamos um encontro em Nova York, mas ele partiu sem se despedir.
Em 1968, no palco do Hollywood Palladium, a cantora Miriam Makeba pediu silêncio e anunciou freneticamente: “… and from Brazil, Si-vu-ca… on guitar, accordion and…” Um grito primal rompeu o silêncio… um solo em que a voz humana se tornava um instrumento, improvisando ritmos e melodias. O público aplaudia de pé, gritando e assobiando. Enquanto isso, estávamos nos mudando para San Francisco, enquanto ele seguia para a África com Miriam Makeba.
Reapareceu em 1969, trazendo histórias de aventuras e perigos. Relatou uma noite com Miguel Arraes no exílio na Argélia, apresentações em palácios presidenciais, um concerto na Tanzânia para guerrilheiros do movimento de Nelson Mandela. O musical Joy estreou em San Francisco, trazendo alegria a um povo dividido pela guerra no Vietnã. A “Palhaçada” de Miltinho virou “Nothing but a fool!” de Oscar Brown Jr. O palhaço só falava inglês.
Nos reencontramos em Nova York, em 1970. Joy estava em cartaz em um teatro off-Broadway. Um crítico escreveu que Sivuca “será mais conhecido como um gênio que toca piano, acordeão e guitarra… alguém que, para todos, soa como um instrumento humano quando ‘scatting’, junto com um solo em um de seus instrumentos.” Ele fez uma turnê mundial com Harry Belafonte, participou de shows na TV com Julie Andrews, gravou com Astrud Gilberto, Hugh Masekela, Paul Simon, Bette Midler, entre outros. Era o rei da colina, no topo da lista. De vez em quando, passava no meu apartamento com sua guitarra, sempre tocando uma canção de Johnny Alf, chamada “Eu e a Brisa”, “… Ah, se a juventude que esta brisa canta. Ficasse aqui comigo mais um pouco…”
Em 1976, partiu novamente para o Brasil, sem se despedir. Tinha pressa. Algo inesperado havia trazido a surpresa que ele tanto esperava… Segui para a África anos depois. Nossas linhas se cruzariam novamente no início do milênio. Havíamos voltado ao Brasil, Sivuca, eu e a Brisa.
Palmarí H de Lucena, João Pessoa 2009