Há amizades que não se explicam — se contam. E, mesmo quando contadas, ainda parecem mistério. A nossa, minha e de Sivuca, é dessas que se tecem com música, silêncios, reencontros e sumiços. Uma amizade feita de acordes e ausência, de afinidades que resistem ao tempo, às distâncias e às partituras da vida.
Tudo começou num ano qualquer que, pra mim, nunca foi apenas um ano qualquer: 1948. Minha irmã recém-nascida chorava na rede da sala, enquanto um rádio novinho preenchia a casa de sons — notícias, forrós, boleros e aquele nome que começava a brilhar além da nossa rua, além da nossa cidade: Sivuca. O “diabo louro da sanfona”. Nosso primo. Nosso orgulho. Nossa trilha sonora.
Não demorou muito e ele apareceu. Bateu à porta com sua sanfona pendurada no peito e aquele jeito meio acanhado de quem sabe que carrega algo maior do que ele próprio. Depois do jantar, abriu o estojo, ajeitou os foles e, quando seus dedos tocaram o teclado, a sala inteira deixou de ser sala. Virou palco. As janelas se encheram de vizinhos, a rua ficou muda, e a única coisa que existia era música. Uma música que parecia ter cor, cheiro, textura. Era como se ele tivesse ladrilhado nosso chão com pedrinhas de luz. E, num gesto rápido, fechou a sanfona. Sabe aquele tipo de mágica que não se repete? Era isso. Aplausos, risos, abraços — e ele, sorrindo, meio sem saber o que fazer com tanto afeto.
Depois sumia. Sumia como quem faz da própria ausência uma forma de presença. Deixava a saudade tocando no repeat da memória. Sabíamos dele pelas notícias, pelas ondas do rádio, pelos recortes de jornal: na Europa, tocando com Os Brasileiros, nos cartazes de um filme francês, nos palcos de Estocolmo, fazendo Marlene Dietrich cantar Luar do Sertão em português, como se fosse natural que uma estrela alemã vestisse a alma do nosso sertão.
Nossos encontros sempre foram assim: fios que se cruzavam no tear do improvável. Conversávamos sobre música, liberdade e aquela sensação incômoda de quem ama o Brasil, mas às vezes precisa fugir dele pra poder respirar. Foi assim em 1964. O país se fechava, e ele, feito pássaro migrante, aceitou um convite de Carmen Costa e voou pra Nova York — sem se despedir. Era muito dele isso. Saía de cena sem aviso, sem ponto final, como quem deixa a melodia suspensa no ar.
Nos reencontramos em 1968, num palco do Hollywood Palladium. A cantora Miriam Makeba pedia silêncio e, quase como quem anuncia uma aparição, soltou: “From Brazil… Si-vu-ca!” E o que se ouviu depois não era exatamente música. Era algo que vinha de um lugar anterior às palavras, anterior até à própria linguagem. Um grito, um chamado, um solo que era voz, era sanfona, era gente. Era ele, inteiro.
Enquanto ele atravessava o mundo com Makeba, eu cruzava os Estados Unidos rumo a San Francisco. E lá, de repente, as nossas histórias se cruzaram de novo. Ele me apareceu cheio de causos: noites de conversa com Miguel Arraes no exílio, concertos na Tanzânia para guerrilheiros de Mandela, apresentações em palácios africanos — como quem ia sem medo onde a música fosse necessária.
E não parava. Logo estava em Nova York outra vez. O musical Joy fazia sucesso nos teatros off-Broadway. Li num jornal que Sivuca, aquele menino da nossa rua, era agora descrito como “um gênio que soa como um instrumento humano”. E quem era eu pra discordar? Tocava com Harry Belafonte, dividia estúdios com Paul Simon, Astrud Gilberto, Hugh Masekela… mas, entre uma turnê e outra, ainda passava no meu apartamento, guitarra na mão, e dedilhava baixinho “Eu e a Brisa”, do Johnny Alf. Como quem pedia pra vida esperar mais um pouco, segurar o tempo só um instante.
Até que um dia, lá por 1976, fez de novo o que sempre soube fazer como ninguém: desapareceu. Voltou pro Brasil sem aviso, como quem corre atrás de alguma surpresa que não pode esperar. Eu também parti. Fui atrás da vida, da África, dos ventos que movem a gente sem perguntar.
Mas a vida é sábia. No início do milênio, voltamos. Eu, ele e a brisa. De volta ao ponto onde tudo começou. Porque amizade assim não tem ponto final. No máximo, uma pausa. Um sustenido. Ou um acorde maior.
Por Palmarí H. de Lucena
(Publicado originalmente no livro “Nem Aqui, Nem Ali, Nem Acolá”, Editora Bargaço, 2009.)