O filme “O Jardineiro Fiel”, nos trouxe recordações dos tempos em que trabalhávamos no Quênia. Voltamos à estrada conectando a cidade de Marsabit ao Lago Turkana, o Mar de Jade. Viajamos com Justin Quayle, nas cenas finais. Homem procurando seu destino. Memórias de safáris em estradas perigosas, cheias de imprevistos. Nossa picape Nissan não existe mais… Deixamos atrás o que restou, uma carcaça verde quebrando a monotonia dos tons pastéis do deserto. Perda total. Lembramos daquele dia em que vivemos e quase morremos na mesma estrada. Sobrevivemos para contar a história…
Estrada de barro, superfície ondulada. Dirigindo em alta velocidade. Região perigosa. Muitos “shiftas”, bandidos, atacando comboios de ajuda. Seis soldados nos acompanhavam. “Simba”, leão em Suahili, um soldado gritou de repente. Distraímo-nos, capotamos várias vezes. Nenhum morto. Feridos transportados para uma base avançada, no deserto. Acordamos na madrugada. Aroma de café e musica no ar. “This is Radio Moscow”, seguido pelo Concerto para Piano Nº 3 de Rachmaninov… O ano era 1982, o Noroeste do Quênia estava sendo devastado pela seca e pela fome. Estávamos a caminho da região.
O povo Turkana, mais de 300.000 pessoas, era o mais afetado. Recebíamos relatórios preocupantes sobre o número de mortos, escassez de alimentos e água, rebanhos dizimados: miséria africana.
Como todo povo nômade, os Turkanas vivem em um ambiente hostil. Seus animais são a única possessão de valor. Suprem todas as necessidades matérias e nutricionais. Símbolos de posição social e riqueza. Deslocam-se constantemente em pequenos grupos, perseguindo nuvens, na esperança de encontrar nova vegetação. A escassez de pastagem gera conflitos entre os Turkanas e seus vizinhos, nômades do Sudão e da Uganda. A abundância de carabinas Kalashnikov, compradas nas fronteiras da Etiópia ou Sudão, inflama as disputas. Sobrevivência é a preocupação diária…
Após nosso acidente na estrada de Marsabit, decidimos usar um Cessna 180, para transportar-nos até áreas remotas do Lago Turkana e a fronteira com o Sudão. Tínhamos que compartir a aeronave com exportadores de folhas de “khat”, uma planta narcótica mascada pelo povo da Somália. Únicos pilotos dispostos a aterrissar em pistas improvisadas, voando em plena estação do Harmatão. Ventos quentes carregados de poeira e areia, do deserto do Saara.
Primeiro “safári” aéreo. Partimos de Nairóbi, capital do Quênia, em direção de Kalacha, um oasis no deserto de Chalbi. Pousaríamos na pista construída pela missão católica. Voaríamos depois para Loyangelani, um vilarejo criado por pessoas escapando da fome, à margem do Lago Turkana.
As instruções de pouso eram específicas. Vôo rasante para espantar os animais. Procure um arvore grande à esquerda e uma normal à direita, pouse entre elas. Evite a lombada na cabeceira. Cinco tentativas depois… Terra firme. Pessoas de todas as idades, gritando a palavra “jilali”, seca na língua suahili, como se fosse uma saudação. Completamos a organização do sistema para a recepção e distribuição de ajuda humanitária na região. Partimos para Loyangelani. Outra aterrissagem complicada. Local conhecido pelos fortes ventos de proa. Sobrevoamos a pista três vezes, por precaução. Continuamos por terra até as localidades onde estavam as pessoas mais vulneráveis. Grupos de mulheres circulando ao nosso redor, repetindo uma palavra “agoro”. Dança macabra. Mãos levantadas aos céus, depois em direção ao estômago vazio, Agoro… Agoro… Agoro… A única palavra na língua Turkana que não necessita tradução. Significa fome.
Justin Quayle descobriu a verdade; converteu-se em uma pessoa humanitária; honrou o legado de Tessa, sua mulher. Todos nós descobrimos algo em Turkana. Da beleza do jardim da nossa origem ao purgatório do deserto implacável, aonde a vida poderá num primeiro momento, extinguir-se…
Quênia 1982