A Rua da Areia, que já foi símbolo de elegância e vitalidade na capital paraibana, hoje se arrasta como um relicário mutilado. Suas fachadas desbotadas, sobrados em ruínas e calçadas dilaceradas são testemunhas silenciosas de uma cidade que, em nome de um progresso apressado, esqueceu suas raízes e negociou a própria alma por meia dúzia de promessas eleitorais.
Ali, onde antes soavam os sinos das procissões e os passos firmes dos desfiles cívicos, agora ecoam buzinas e o ronco abafado de um viaduto que esmaga a memória urbana. Construído sob a lógica utilitarista, esse viaduto atravessou a rua como uma cicatriz de cimento, apagando a delicadeza de seu traçado e impondo uma modernidade bruta, incapaz de dialogar com o passado.
Muito se fala — e continua se falando — sobre a revitalização do centro histórico. Mas o que se vê, na prática, é um jogo cínico: sob o pretexto da preservação, instala-se a especulação. Sob o verniz da restauração, esconde-se o abandono. Reformam-se fachadas com recursos públicos, mas os prédios seguem fechados, vazios, à espera da valorização no próximo ciclo especulativo. A “preservação”, nesses casos, serve mais aos investidores do que à comunidade. Como alertava Jane Jacobs, “preservar sem vida urbana é museificar a pobreza e fantasiar a decadência com tinta acrílica.”
As calçadas da Rua da Areia — que deveriam ser passagens de convivência e dignidade — foram sequestradas por barracas, degraus, postes, buracos e agora até por banners eleitorais, estendidos como redes de pesca sobre o espaço público. O pedestre que ousa caminhar ali trava uma batalha desigual contra o descaso. Pessoas idosas, com deficiência ou com carrinhos de bebê são forçadas a desviar para o asfalto, disputando com ônibus e motocicletas o que restou da cidade.
Jane Jacobs insistia que as calçadas são os bastiões da vida urbana — porque nelas mora a vigilância natural, o encontro cotidiano, a segurança espontânea. Quando esse espaço é invadido ou negligenciado, a cidade adoece. E João Pessoa tem adoecido lenta e visivelmente, sob a anestesia do discurso técnico e o torpor da má política.
Há três anos, o Ministério Público alertou sobre as violações ao Código de Posturas, que proíbe qualquer obstáculo nas calçadas. A Prefeitura prometeu padronização, requalificação, fiscalização. Mas, na prática, tudo permanece desigual: os logradouros de “baixo octanagem eleitoral” continuam esquecidos, enquanto o discurso da revitalização serve de palanque para planos que não saem do papel.
A Rua da Areia não é apenas uma via. É um espelho — e nele se refletem as escolhas que a cidade fez: escolhas que priorizam o carro em vez do andarilho, o concreto em vez do convívio, o espetáculo da promessa em vez da rotina da manutenção. Preservar uma cidade não é apenas salvar tijolos — é salvar histórias. É manter vivas as esquinas da memória.
João Pessoa ainda pode se reconciliar com a Rua da Areia. Mas isso exigirá mais do que discursos cerimoniais ou obras pontuais. Exigirá coragem institucional para romper o ciclo da omissão, da especulação disfarçada de restauro e da maquiagem urbana que transforma patrimônio em palco vazio. Será preciso calçadas transitáveis, prédios habitados, varandas com roupa no varal, cheiro de café, comércio de esquina, moradores permanentes — a vida cotidiana real que Jane Jacobs chamava de “a dança intricada da calçada.”
A requalificação não pode continuar como estratégia eleitoral ou projeto técnico descolado da comunidade. Precisa ser um compromisso republicano, com continuidade administrativa, critérios transparentes e participação efetiva dos que ali vivem. Porque uma cidade que não respeita seu chão, suas ruas e suas memórias — e que trata seu centro histórico como moeda de troca — está condenada a perder, junto com seus edifícios, sua alma cívica e seu senso de pertencimento coletivo.
Por Palmari H. de Lucena