Resgatando Fernanda

Policiais conversando animadamente. Taças de cafés e fatias de bolo decoravam o balcão de fórmica. Lanche no meio da tarde, momento de descontração. Motocicletas estacionadas na calçada do estabelecimento. Padaria na periferia da cidade. Bandidos, policiais e famílias compartilhavam o mesmo espaço. Cresceram juntos; caminhos diferentes…

Bamboleando na calçada estreita, uma menina segurando a mão de uma jovem mulher, sua irmã por adoção. Repetindo a palavra chocolate, como se fosse um mantra. Chegaram à porta. Policial sorriu em direção ao par, o sorriso da criança desapareceu subitamente. Sentia medo, falou em tom confidencial: ¨[…] vamos simbóra, aqueles homens quebram as portas das casas e mata os pais da gente, quero voltar pra casa!¨ Soltou a mão e correu na direção oposta. Sentou-se no meio fio, chorava incontrolavelmente. A irmã tentou assegurá-la de que não estavam em perigo, ¨[…] policiais só matam os bandidos¨. Pânico súbito, o pai da menina estava na prisão por homicídio e tráfico de drogas. Desconexão entre sua própria realidade e a verdade dos fatos. Surrealismo cruel. Voltaram à padaria. Os policiais partiram. Sirenes estridentes ofendiam os ouvidos. Bandidos, bandidos, bandidos…

Mulher grávida acompanhada do irmão e de uma filha menor. Abraçou timidamente a coordenadora da pastoral da igreja. Os olhos tristes diziam tudo, carecia de ajuda. Conheciam-se há anos, desde a outra gravidez. Pessoas da comunidade à margem da BR-230,frequentavam a igreja aos domingos. Crianças daqui brincavam com as crianças de lá. Opção preferencial dos menos pobres pelos mais pobres. O resgate de Fernanda começara antes do seu nascimento.

Dia feliz. Bebê passado de mão em mão, como uma bandeja de doces. Família festejava na pequena sala da casa modesta. Sentada diante da televisão, a mãe comia distraidamente. Partiram no fim da tarde. Voltavam sempre no final da semana. Passaram-se meses assim. A família demandou uma decisão. Finalmente entregaram a criança para a guarda da família substituta, sem formalizar a adoção. As visitas tornaram-se infrequentes, mesmo aos domingos. A mãe evitava o tópico da legalidade, quando entabulado.

Mulher idosa apareceu no portão, avó materna da criança. Estava satisfeita com o zelo com que tratavam a neta, porém precisava do dinheiro da bolsa família. Queria a menina de volta, sua filha deixara de contribuir para o orçamento doméstico. Propensão marginal para o consumo diário, mais uma vez, determinada pelas prioridades dos adultos. Ciclo da pobreza intergeracional permaneceria inquebrável na casa de Fernanda. Partiram.

Duas crianças sentadas na calçada, no outro lado da rua. Fernanda! Um grito de reconhecimento. Duas mulheres jovens mal continham o entusiasmo. Pediram que se aproximassem ao portão. Algo havia mudado, notaram imediatamente. Embrulhadas precariamente, seus modestos pertences diziam tudo. Fariam os trâmites requeridos depois, prometera a mãe. Fernanda estava de volta, desta vez para ficar, ainda que sem a desejada adoção. Quatro anos passaram-se…

Parentes de Fernanda circulam na comunidade. Seu tio, um adolescente que brincava com suas irmãs adotivas, abandonou a escola e a convivência social. Assaltante e traficante de crack, aterrorizando pares e vizinhos indiscriminadamente. Alcoolismo e outros flagelos da mente e da pobreza escravizam quase todos os adultos da família. Cane mangia cane…

Criança tímida, problemas com o desempenho escolar e socialização. Herança maldita da disfuncionalidade e pobreza da família em que nasceu. Experimentando dificuldades em ajustar-se à nova realidade. A mãe biológica, visita esporadicamente. Precisa de subsídios para justificar a bolsa família. Coleta informações sobre frequência escolar, saúde preventiva e outros requerimentos. Parte sem dizer quando volta, talvez um dia nunca volte.

O resgate de Fernanda continuará…

Palmarí H. de Lucena palmari@gmail.com