Quarto de despejo déjà-vu

Quarto de despejo déjà-vu

Primeira entrada do diário de Carolina Maria de Jesus, mulher favelada autora do livro Quarto de Despejo: “15 de julho de 1955 Aniversário da minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida.” Revelações que chocaram o Brasil, ressonaram e ainda ressoam mundo afora, o marco zero da fome e da miséria em que muitos brasileiros viviam e continuam vivendo.  

“Nenhuma calamidade é capaz de desagregar, tão profundamente e num sentido tão nocivo, a personalidade humana como a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Fustigado pela necessidade imperiosa de comer, o homem esfomeado pode exibir a mais desconcertante conduta mental. Seu comportamento transforma-se como o de qualquer outro animal submetido aos efeitos torturantes da fome (…)”, um grito de alerta de Josué de Castro a  perigosa convergência da insegurança alimentar com a insegurança comunal. Enquanto milhares de pessoas passam e até morrem de fome, governos continuam usando a retórica do medo para justificar  militarização de forças policiais, criminalização e incursões desordenadas em comunidades com “caveirões”, veículos famosos pela supressão violenta de protestos antiapartheid na África do Sul.

Alimentação é um direito social do povo brasileiro. Esta previsão, que pode parecer óbvia à primeira vista, foi incluída na Constituição pelo Congresso Nacional em 2010, direito negado a 19 milhões de brasileiros que estão em situação de fome. Desde 2020, o aumento da fome no Brasil foi impactado pela pandemia, situação que já vinha agravando antes da tragédia sanitária. Alastramento da fome é reflexo também do fim ou esvaziamento de programas voltados para estimular a agricultura familiar e combater a fome, além de defasagem na cobertura e nos valores do Bolsa Família.

Problemas estruturais de miséria, violência e racismo uniram-se a inflação, que voltou a assombrar as pessoas pobres ou sobrevivendo com subsídios inadequados. Descrença com o sistema político, evidenciado nos comentários da escritora seis anos antes do golpe de 1964, “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia”. Dilema que continua presente na mente e cotidiano do povo brasileiro.

Ouvimos ecos destas palavras da escritora repetidamente, quando escritas no auge do  desespero: “O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais”. Cenas de pessoas coletando ossos de carcaças em lixões, prospectando rejeitos das mesas de bairros nobres, fritando peles de carne ou simplesmente matando qualquer animal para alimentar-se, são parte da paisagem dantesca da miséria do País em 2021. Brasileiros vitimados por políticas públicas equivocadas e indiferença dos criadores do lumpezinato encurralado na desigualdade, racismo e opressão econômica.

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores

Comentários

  • Sonia disse:

    Palmari. Posso lhe dizer que é uma honra receber todas essas maravilhas.
    Gratidão.

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