Quando todos os homens do mundo…

Mesmerizado pelo drama desenrolando diante dos seus olhos, adolescente atento aos seus mínimos detalhes, com concentração rara à sua idade. Pequeno cinema, refúgio da monotonia da aula de Latim ou da aspereza da gramática portuguesa. Sonhar ali era possível…

Tripulação com botulismo, devido carne suína contaminada, barco pesqueiro no Atlântico Norte. SOS em ondas curtas, captada por rádio amador no Togo, na África. Médico francês, em férias no país, informado sobre o teor da mensagem, concluiu que só um soro podia salvar a tripulação. O medicamento deveria chegar ao navio em menos de quinze horas. A informação é transmitida para um radio amador em Paris, que contata o Instituto Pasteur. Obtêm o soro, que será transportado para Berlim Oriental, em um avião polonês. Oficial norte americano encarregado de recolher a carga, atrasa-se. Avião soviético é disponibilizado para levá-la até Copenhague, seguindo para Oslo a bordo de uma aeronave francesa. Piloto norueguês alcança o navio e solta um pára-quedas com o precioso soro. Maomé, um mulçumano do Norte da África, único tripulante não acometido da doença, mergulha nas águas turbulentas e resgata o pacote do mar. Toda a tripulação se salva…

Nunca nos esquecemos do filme: “Si tous les gars du monde”. Grande lição, solidariedade humana na escuridão do cinema.

Passando pela LABRE, a caminho da escola. Antena de rádio perfurando o céu, espalhando mensagens de paz e amizade. Povos do mundo se comunicando, mesmo com as dificuldades causadas pela estática ou pelos sinais transmitidos na cadência do Morse. Não importava em que idioma falassem. Comunicavam-se em código “Q”, uma linguagem própria. QRA… QTH… QSL…

Televisão e telex transmitindo imagens e detalhes de um terremoto no México. Âncoras narravam uma história, em frases curtas, cuja enormidade era evidente nas cenas. Galvanizados por sentimentos de solidariedade, o mundo respondeu.

Rumamos em direção à Cidade do México, imediatamente. Leve tremor enquanto o avião pousava. Longo momento de terror, em poucos segundos. Centro da cidade, odor nauseabundo de corpos em decomposição, pairava no ar. Números estarrecedores, mais de 250 prédios destruídos, milhares de pessoas desabrigadas, mortas ou desaparecidas nos escombros…

Governo apático, atônito, minimizando a gravidade situação. Mãos ensanguentadas removendo escombros com ferramentas rudimentares, desenterrando sobreviventes e mortos. Exército solidário de cinquenta mil soldados. Plácido Domingo, em mangas de camisa, ajudando nos trabalhos de resgate. Havia perdido seus tios, um sobrinho e seu filho. O socorrista Marcos Zariñana, conhecido como “La Pulga”, e membros da equipe de resgate “Los Topos”, os topeiras, moviam escombros e penetravam nas brechas procurando sobreviventes. Estrangeiros trabalhando lado a lado com mexicanos. Atos de heroísmo cidadão, em um país carente de heróis e solidariedade.

“Nós estamos bem, os 33, no refúgio”, mensagem escrita dos mineiros desaparecidos há 18 dias nas entranhas da terra. Esforço multinacional, americanos, alemães, japoneses, coreanos, suecos e chilenos, comunicando-se pelo Internet. Todos unidos para salva-los. Desenhada pela NASA, construída pela Marinha Chilena, o primeiro mineiro saiu da cápsula dois meses e nove dias depois, seguido pelos demais companheiros. Primeiro passageiro e último a sair, o socorrista Manuel “Manolo” Gonzáles, que desceu para orientar o resgate. Todos salvos. Obstáculos superados, a solidariedade humana havia vencido. Tínhamos novos heróis…

Homem concentrado na tela da televisão, quarto no escuro. Voz monótona da CNN, expertos explicando minúcias do resgate. Manolo entra na cápsula, lembranças de Maomé ou La Pulga. Ficção e realidade justapostas. Lição de humanidade aprendida há mais de cinquenta anos, voltando e voltando. Éramos mais humanos. E se todos os homens do mundo… João Pessoa 2010