Quando o Voto Serve ao Autoritarismo, Impunidade e Corrupção

Quando o Voto Serve ao Autoritarismo, Impunidade e Corrupção

Há momentos na história em que os instrumentos da democracia — o voto, o mandato, a representação — deixam de proteger o cidadão e passam a blindar os poderosos. É quando líderes eleitos passam a agir como soberanos, testando os limites da legalidade com atos que, pouco a pouco, corroem as bases do Estado de Direito.

Nos Estados Unidos, o atual presidente não esconde sua disposição de tratar as instituições republicanas como barreiras pessoais. Cortes federais, juízes, promotores e até a própria Constituição tornaram-se alvos recorrentes de sua retórica e de seus atos. Quando contrariado, reage com demissões, intimidações ou decretos de força duvidosa.

Esse padrão, no entanto, não é exclusividade americana. Em diversas partes do mundo, o avanço da extrema direita tem revelado uma estratégia repetida: líderes eleitos democraticamente voltam-se contra os próprios mecanismos que legitimaram sua ascensão. Atacam a imprensa, desacreditam o Judiciário, instrumentalizam o Legislativo e, sobretudo, moldam as leis conforme seus interesses.

Paralelamente, a corrupção deixa de ser vergonha e passa a ser método. A diferença, agora, é que ela não se esconde: é justificada, normalizada e blindada por aliados. A impunidade torna-se política de Estado. Escândalos não provocam renúncias — geram aplausos entre cúmplices. Parlamentares acusados de crimes graves legislam em causa própria, alterando normas para se autopreservar. O Legislativo deixa de ser casa do povo e se converte em abrigo dos intocáveis.

O que se constrói, então, é uma farsa democrática: urnas funcionam, mas direitos se apagam por dentro. O perigo não está apenas nos rompantes autoritários, mas na naturalização dos desvios. Quando desobedecer ordens judiciais vira hábito; quando juízes são ameaçados por decisões técnicas; quando universidades são punidas por sua autonomia; quando a cidadania deixa de ser um direito de nascimento e passa a depender da ideologia dos pais — estamos diante de uma nova autocracia: aquela que não precisa fechar o Congresso, mas o esvazia de sentido.

O mais alarmante é a aparência de legalidade. Nada de tanques nas ruas ou censura escancarada. A erosão se dá sob aparência institucional, com carimbo oficial e retórica jurídica, travestida de “emergência”, “interesse nacional”, “ordem moral” — ou de tentativas explícitas de reescrever a Constituição para acomodar abusos e garantir a impunidade de quem legisla em nome próprio.

A resistência, portanto, exige mais que protesto. Exige clareza. Saber que o voto é parte da democracia, mas não seu todo. Que poder se limita, se fiscaliza, se confronta. E que uma Constituição — por mais sólida que pareça — depende da coragem dos que a defendem, e não da conveniência dos que a governam.

A história mostra que é possível deter o retrocesso — mas não sem custo. O silêncio da sociedade, a tibieza das instituições e o conformismo diante da força disfarçada de legalidade são os maiores inimigos de uma democracia que pretende durar.

Não se trata de alarme. Trata-se de ver com lucidez que o poder, quando sem limites — mesmo que tenha vindo pelas urnas —, deixa de ser democrático. E que a corrupção protegida pela impunidade não é apenas um vício do sistema: é o seu veneno mais eficaz.

Por Palmarí H. de Lucena