Por décadas, o dólar reinou soberano, símbolo de confiança global e pilar da hegemonia americana. Hoje, porém, essa supremacia cambaleia. Não apenas pelas sombras de uma guerra comercial inconsequente, mas por uma sucessão de decisões erráticas que abalam a fé dos investidores, corroendo o próprio alicerce do poder financeiro dos Estados Unidos.
Quando Donald Trump chegou à Casa Branca, os riscos de recessão eram modestos. Agora, com tarifas sem rumo e acordos comerciais naufragados, especialistas apontam para uma possibilidade real de retração econômica — e não uma retração comum, mas uma capaz de enredar o país numa armadilha de estagnação com inflação crescente. A história americana recente não oferece paralelo tão grave: seria preciso retroceder aos tempos de Andrew Jackson para encontrar uma gestão que, de forma voluntária, lançou o país em caos econômico.
As recessões cobram preços amargos: empregos se evaporam, empreendimentos naufragam, sonhos são adiados ou enterrados. Contudo, mais ameaçadora que a recessão é a erosão silenciosa da posição dos Estados Unidos como porto seguro financeiro. O dólar, antes motor da globalização, vê seu prestígio questionado em fóruns antes impensáveis.
Essa moeda, que facilitou o comércio de commodities, a emissão de dívidas corporativas e o funcionamento de bancos centrais mundo afora, tornou-se, paradoxalmente, refém da política doméstica americana. Hoje, decisões improvisadas na Casa Branca reverberam instantaneamente nos mercados globais, como uma pedra lançada num lago sem fim.
O “privilégio exorbitante” — como definiu um dia Valéry Giscard d’Estaing — deu aos EUA a vantagem de financiar seu crescimento a baixo custo e impulsionar sua influência internacional. Mas essa vantagem não é um direito divino: depende da crença de que o sistema financeiro e político americano preserva estabilidade e respeito institucional. A dúvida, agora, alastra-se.
A guerra comercial iniciada por Trump encareceu insumos, reduziu margens de lucro e paralisou investimentos. Empresas titubeiam diante de incertezas; consumidores enfrentam alta de preços em itens cotidianos como calçados e automóveis usados. Enquanto isso, o dólar, antes incontestável, começa a ceder terreno a alternativas — como reservas de ouro ou moedas digitais em desenvolvimento por dezenas de países.
Esse movimento tem reflexos diretos também sobre economias como a brasileira, tradicionalmente vulnerável às oscilações da moeda americana. Um dólar mais forte encarece as importações e pressiona a inflação no Brasil, enquanto beneficia exportações de commodities como soja e minério. Já um dólar mais fraco reduz a competitividade internacional dos produtos brasileiros, ao mesmo tempo em que pode aliviar pressões inflacionárias internas. Em ambos os cenários, a instabilidade exige dos países emergentes políticas cada vez mais sofisticadas e resilientes para enfrentar a maré global.
A retórica agressiva contra o Federal Reserve, a ameaça de demitir seu presidente, o desprezo por decisões judiciais, o confisco de recursos autorizados pelo Congresso: todos esses gestos abalam a percepção de segurança que sustentava a atratividade dos ativos americanos. Não se trata apenas de juros ou crescimento: trata-se de confiança — e confiança, uma vez perdida, não se recompõe facilmente.
Alguns defensores da atual política acreditam que o enfraquecimento do dólar trará de volta fábricas e empregos, corrigindo déficits históricos. Mas ignoram que o custo desse processo poderá ser alto: inflação, queda no poder de compra das famílias, enfraquecimento da capacidade de negociação internacional, e dificuldades para estimular a economia em futuras crises.
A predominância do dólar não tem garantias eternas. Antes dele, outros símbolos já tombaram: o marco alemão, a libra britânica, o ouro espanhol. Mesmo sem um substituto claro no horizonte — o euro fragilizado, o renminbi controlado — o alerta está dado: a mudança, se vier, será lenta, mas inexorável.
Hoje, os mercados já não olham para os Estados Unidos com a reverência automática de outros tempos. E talvez, quando esse privilégio exorbitante finalmente se dissipar, muitos americanos sintam falta dos dias em que o mundo inteiro confiava cegamente em sua moeda — e, por extensão, em seu futuro.
Por Palmarí H. de Lucena