Há estádios em que não se escuta o grito da torcida. Escuta-se o silêncio cúmplice. O silêncio das diretorias, dos patrocinadores, das federações. Silêncio que grita mais alto do que o próprio gol.
No coração do futebol brasileiro — esse esporte que se vende como paixão nacional, como escape, como arte — há uma chaga que se recusa a cicatrizar: o assédio sexual cometido por alguns de seus mais célebres representantes. Não é novo, tampouco raro. Mas é sistematicamente abafado por contratos publicitários, idolatrias cegas e uma cultura que ensina a muitos rapazes que fama é sinônimo de imunidade moral.
A infância desses ídolos costuma ser marcada por chuteiras apertadas e campos de barro. Mas, ao alcançar o estrelato, muitos se veem cercados por um universo onde o não feminino é encarado como desafio, e o consentimento vira mera formalidade descartável. O vestiário, com suas piadas fáceis e sua virilidade performada, se transforma em terreno fértil para a perpetuação daquilo que deveria ser inaceitável.
Não é por acaso que casos como os de Dani Alves, Robinho e outros ecoam como escândalos internacionais. E não é só pelo que fizeram — ou são acusados de fazer — mas também pela reação de boa parte da opinião pública: a vitimização dos acusados, a tentativa de desqualificar denúncias com argumentos torpes como “ela sabia onde estava se metendo”, ou a célebre frase que sangra ouvidos: “ninguém mexe com meu jogador”.
Torcedores transformam criminosos em mártires. Clubes fazem malabarismos jurídicos para não romper contratos. E emissoras, quando não silenciam, tratam as vítimas como notas de rodapé — enquanto o “craque” continua sendo narrado em câmera lenta, com trilha épica.
O problema não está apenas nos jogadores. Está na estrutura que os protege. Nos dirigentes que ignoram denúncias. Nos patrocinadores que preferem a lucratividade à coerência ética. Está nas categorias de base, onde já se sussurra sobre abusos abafados. E está também em nós — sociedade — que muitas vezes preferimos o aplauso ao incômodo, o gol à verdade.
Se o futebol é espelho da nação, o reflexo que se vê hoje é turvo, manchado por machismo, impunidade e silêncio. E até que esse silêncio seja substituído por responsabilização, o grito de gol virá sempre acompanhado de um eco sombrio.
Porque não há beleza no esporte quando o respeito é expulso de campo. E não há vitória verdadeira quando se marca um gol sobre o corpo e a dignidade do outro.
Por Palmarí H. de Lucena