Quando a Tarifa Vira Arma e a Crise, Estratégia

Quando a Tarifa Vira Arma e a Crise, Estratégia

No coração de um mercado onde o mundo compra o que não sabe fabricar, os ecos da guerra comercial não assustam — inflam. No lugar do temor, cresce uma indignação obstinada. Enquanto de um lado se impõem tarifas como punhais, do outro se finca o pé no chão e se sussurra, com dentes cerrados, que não se dobram à força bruta do dólar.

Na engrenagem monumental do comércio global, o conflito entre Estados Unidos e China não é apenas uma disputa de percentuais. É um embate entre modelos, egos e visões de futuro. As tarifas americanas — que agora atingem níveis punitivos — miram não apenas produtos, mas estruturas inteiras de produção. E, no contragolpe, Pequim não apenas responde: projeta.

Aos olhos do Ocidente, o gesto chinês pode parecer teimosia. Mas para quem opera há décadas à sombra de slogans de autossuficiência, resistir é quase natural. Cancelamentos, estoques parados, remessas em compasso de espera. E ainda assim, nenhuma pressa em buscar conciliação.

Esse impasse pode, ironicamente, acelerar aquilo que há muito se adiava: a transformação do gigante exportador em uma economia voltada ao próprio consumo. Durante anos, a estratégia chinesa foi crescer às custas das exportações — ainda que ao custo de salários baixos, moeda fraca e uma dependência excessiva dos humores externos. Agora, com a pressão do outro lado do Pacífico, talvez a hora de reequilibrar tenha finalmente chegado.

É nesse cenário que a China reencontra o mundo, não como oficina barata, mas como parceira dos que buscam alternativas. O eixo muda. O destino das mercadorias se desloca. Oriente Médio, América Latina, sudeste asiático e Europa começam a entrar no radar com mais frequência. Alguns fábricos migram. Outros reinventam suas rotas. E, enquanto os EUA jogam com volatilidade, Pequim ensaia constância.

Neste novo tabuleiro, o Brasil surge com protagonismo silencioso. A parceria sino-brasileira se aprofunda ano após ano — não apenas na exportação de commodities, mas em tecnologia, infraestrutura, energia e até projetos educacionais. Em meio à turbulência geopolítica, Brasília percebe que o futuro comercial pode estar mais a oriente do que ao norte. E Pequim, por sua vez, vê no Brasil não só um celeiro de recursos, mas um aliado estratégico no tabuleiro do sul global.

A contradição é gritante: as sanções que pretendiam frear o avanço chinês podem estar, inadvertidamente, alimentando sua reinvenção. Os mesmos países que antes temiam a balança comercial agora veem uma China mais aberta ao consumo e, talvez, mais disposta ao equilíbrio. Os aliados dos EUA, diante disso, começam a se perguntar: é mais seguro negociar com um parceiro pragmático — ainda que autoritário — ou com uma potência imprevisível e errática?

No alfabeto ideográfico chinês, crise é desenhada com os traços de dois conceitos: perigo e oportunidade. Enquanto Washington se entrega ao isolacionismo tarifário, Pequim tenta escrever um novo capítulo com esses mesmos pincéis. A guerra pode ser comercial, mas o embate é de narrativas. E o mundo — em silêncio atento — observa para qual delas dará razão.

Palmarí H. de Lucena