Algo novo aconteceu na Conceição, rua famosa no bairro pelos desfiles dos blocos carnavalescos. Um cortejo triste acompanhava um ataúde azul. Caixão de anjo. Decorado com uma grinalda simples e um ramo de palma. Choro abafado de uma mulher jovem, pálida, frágil. A mãe de Severino. Vestida de negro. Protegida por todos. Adultos falando baixinho, sussurrando, como se não quisessem acordar a criança. Homens tristes arrastando os pés. Curvados. Os fundos de suas calças quase tocando a parte posterior dos joelhos. Rua poeirenta, sem calçamento. Descobrimos então que nem todo anjo tem asas. Simplesmente voam. Noites sem dormir, nem o leite quente funcionava. Imaginando o anjo bem longe, no céu azul. Ainda não entendia a imensidão da perda.
Santo Anjo do Senhor…
Choro de bebês. Uma sinfonia de dor. Médicos e enfermeiras fazendo anotações rápidas nos prontuários. Chorando alto e “gritando”; alimentação e sono pobres; diarréia; tremores… A mãe estava bem longe. Enfermaria especial. Vultos brancos partindo apressadamente. Uma enfermeira ficou examinando a lista das crianças. Sorrindo timidamente, como se em “rêverie”. Ouvindo de repente um choro sadio, brigão, de um nova-iorquino de verdade. Vai sobreviver! Olhou mais uma vez na direção das crianças. Outro dia no Harlem Hospital.
meu zeloso guardador…
Hospital de campo, enfermaria pediátrica. Crianças resgatadas de uma zona de guerra, Província de Chokwe, Moçambique. As irmãs do hospital realizavam troca de plantão. Paulatinamente, como se em piloto automático. Rotina vital. Na parede externa da enfermaria, um relatório estatístico com a situação de saúde das crianças e óbitos. Vinte e cinco crianças em estado grave. Malária cerebral, HIV, disenteria e kwashiarkor. Voltamos no final da tarde. Olhamos as estatísticas. Muitos nomes haviam desaparecido. Deram alta? Uma irmã fez o sinal da cruz, pausadamente. Olhou para o céu, como se dizendo: Perdoe-nos, Senhor, tentamos tudo… Respondeu finalmente, “… não, foram para o céu…”
já que a ti me confiou à piedade divina…
Um ataúde branco no centro de uma sala. Uma grinalda arranjada com pressa. Uma menina, uma recém nascida. Viveu e lutou muito para viver um pouco mais. Lembramos do casamento dos pais. Dia feliz, bem longe de hoje. Imaginamos os planos que haveriam feito. Quantas vezes sonharam com a criança do ataúde. Ah, quantos planos… Lembramos da felicidade da jovem mãe quando a encontramos em um supermercado. Conversando alegremente, segurando o ventre, como se estivesse ninando o bebê. A expectativa de continuar a vida. A palavra mãe estampada no seu rosto bonito, o conforto da realização de um sonho…
sempre me rege, me guarda…
O avô perdido na imensidão da dor. Pai consolando a filha. Louvando-a, “minha filha é muito forte…” O abraço apertado do pai da criança, como se quisesse ficar eternamente colado a uma pessoa humana. Todos olhavam. Nenhuma pergunta ou comentário. O pequeno ataúde dizia tudo. Familiares, amigos, colegas dos pais. Movíamos em silêncio. Como a criança olhando o cortejo do anjo da Rua da Conceição.
me governa e ilumina…
Cantarolando baixinho a “Pavane pour une infante défunte” de Ravel. Não tinha nada a ver com morte ou lamento. Nome escolhido por aliteração. Título melodioso e poético. Música divina. Confortante. O padre encomendava o corpo e a alma da criança, com a eloqüência daqueles que têm uma fé profunda na magnificência de Deus. O perfil da mãe. Camafeu de uma mulher nobre. Olhos fixos na terra. Pássaros barulhentos sobrevoando a cena. Cães ladrando. Distantes. O ruído das pás raspando o chão. Os últimos grãos de terra. As rimas do poeta alagoano, Jorge da Cunha Lima, ressoando nas trevas da dor. Da dor de todos nós.
“Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos…”
O anjo, simplesmente, voou. Em direção ao céu.
Amém…
João Pessoa 2009