Estávamos mais uma vez preparando-nos para deixar Moçambique. Rituais de partida. Decidimos caminhar ao redor da quadra em que vivêramos na Rua Francisco Magumbwe. Volta olímpica sem o troféu da vitória ou o bramido da multidão. Chegamos à esquina da Rua de Mukumbura, paramos diante do magnifico casarão dourado do Serviço Meteorológico. Sentinela desarmada, guardiã da história da cidade, não importava qual vestimenta: Lourenço Marques ou Maputo. Testemunhando os caprichos e as extravagâncias climatológicas da natureza, que nem sempre portavam as consequências benéficas almejadas pelo povo, cansado da guerra e das calamidades naturais.
¨Ministério das Calamidades¨, anunciava a placa. Recebendo e distribuindo ajuda humanitária. Quarenta e três jipes novos de organismos internacionais estacionados no pátio dramatizavam a situação precária do país. Lamentavelmente, os doadores permitiam que Moçambique continuasse a guerra, sem condicionar a ajuda à resolução pacífica do conflito armado. Guerra, enchentes e o programa de ajustamento estrutural do FMI conspiravam para infligir miséria e desespero, indiscriminadamente. O amanhã era a única coisa palpável, sempre amanhã. Sobrevivência ofuscando a sapiência. Melhor viver sem saber do que saber e morrer, parecia ser o refrão do coro grego da tragédia moçambicana. O ano da nossa primeira visita, 1989.
Voltamos várias vezes. Chegávamos apreensivos, partíamos deprimidos. Em uma das viagens, decidimos visitar nosso amigo, o escultor Alberto Chisano. Procuramos o único taxi disponível, em frente ao Hotel Polana. Taxista português: homem truculento e obtuso, cuja obsessão pessoal era polir continuadamente uma Mercedes-Benz antiquíssima. Levar-nos-ia à casa do artista no bairro da Matola, porém não esperaria, caso não estivéssemos ao portão da casa antes das 17 horas. Demandou pagamento adiantado, ida e volta. Clima de guerra: toque de recolher não anunciado às 18 horas. Penumbra e perigo compartilhavam o mesmo espaço. O país encontrava-se em curso de colisão frontal com o futuro. A única esperança era que um dia as perdas ficassem insuportáveis para ambos os lados do conflito. Cansaram de lutar em 1992, a guerra civil que durara dezesseis anos terminou. Não regressamos até os meados da primeira década do novo milênio.
Acalentados pelo barulho das ondas do Índico, cogitávamos sobre o futuro. O nosso e o de Moçambique. Quebrando a linha do horizonte, pessoas em vestimentas de cores diversas, decoradas com símbolos como a cruz, as estrelas ou a lua. Cantavam e dançavam ao ritmo de tambores. Profecias, curas, tudo era possível. Repetiam o ritual todos os dias. Eles gritavam, nós olhávamos. A vista mudou um dia. Doze modelos sul-africanas, todas brancas, esbeltas e fúteis, invadiram as areias que nos separavam do mar e dos religiosos. Ensaio fotográfico para uma revista esportiva. Competição pacifica entre a cruz e a carne. Nenhuma das partes declarou-se vencedora. O mar venceu…
O artista Malangatana, homem da Renascença. Fazia tudo com a coragem do seu sobrenome e a humildade da sua origem. Conhecemo-nos em Harare há quinze anos. Nosso primeiro reencontro. Conversamos por horas sobre as novas possiblidades das artes moçambicanas, crentes do poder curativo da paz. Recomendou-nos uma exposição de arte, com esculturas criadas por jovens artistas com metal de carabinas AK 47s, minas de guerra e armas de mão. As obras expressavam a capacidade e a criatividade do ser humano de reconciliar-se com o passado. Um milhão de mortos. Muitas armas ainda matavam. Deparamo-nos ao sair com uma bandeira moçambicana. Símbolos da nação: uma Ak-47, uma enxada e um livro aberto. A luta continua!
Partíramos de Nova Iorque três meses antes. Mudamos para a casa da Rua Francisco Magumbwe, um sobrado colonial chamado Casa da Alegria, após uma breve estadia no hotel. Servira como câmara de descompressão antes de chegarmos à tona no Brasil, nosso destino final e porto seguro. ¨[…] O céu lá é mais azul… ¨, declarou o cozinheiro Vasco ao nos despedirmos.
Palmarí H. de Lucena palmari@gmail.com