Andar em público com o torso descoberto, não é um tabu nas zonas rurais de Gana. As mulheres não devem mostrar as coxas e os quadris, que são cobertos por um short, vestido por baixo da saia. Cruzar as pernas é considerado um ato sensual e provocativo. Todas as meninas devem usar brincos para mostrar que são mulheres de verdade. A roupa da qual fazem uso, são em regra, cangas ou trajes artesanais. Quando convencionais, geralmente são importadas e de segunda mão, conhecidas na língua Akan, como “obruni waawu”. Uma tradução irônica da frase “roupa de defunto branco”.
As mulheres de um grupo católico americano, após curta viagem de familiarização a vilarejos nas zonas rurais, estavam perplexas com a mostra dos seios entre as mulheres tribais. Todas tinham muitas perguntas a fazer. Queriam ajudar, não acreditavam que seios descobertos em publico era coisa cultural ou natural. A líder do grupo declarou enfática, “… só as católicas usam sutiãs… como é possível no século vinte?…” Outra declarou taxativamente, “… é pobreza!…” Prometeram angariar doações nas suas paróquias. Partiram. Perdemos o debate antropológico.
Pouco mais de seis meses após a visita do grupo, a Alfândega nos notificou que um container com roupa feminina consignada à nossa organização, havia chegado. Abrimos o container. Descobrimos então que éramos beneficiários de uma montanha de sutiãs. Examinamos a doação. Detalhe, quase todos eram numero 32A. Tamanho geralmente usado por adolescentes americanas, como “sutiã de treinamento”. Chamamos as doadoras americanas. Informaram entusiasticamente que uma empresa havia doado um lote descontinuado de sutiãs, em troca de um beneficio tributário. Não sabíamos o que fazer. Consultamos as associações das mulheres dos vilarejos. A reposta foi imediata e clara, queriam os sutiãs. Adicionaram um pedido, se possível, doem o container também. Enviamos tudo.
Poucos meses antes do fim da nossa missão em Gana, recebemos a visita de uma grande delegação de chefes tribais e lideres das organizações femininas, que foram agraciadas com o container de sutiãs. Souberam da nossa partida, queriam fazer uma homenagem especial. Não estávamos certos por que.
Partimos para visitar os vilarejos. Os chefes nos asseguraram que seriamos recebidos com pompa e circunstâncias. Inauguraríamos uma creche, um poço d’água, uma debulhadora de cereais e um posto de saúde. Os vilarejos estavam em festa. Nunca haviam experimentado tanto desenvolvimento, em tão pouco tempo. Ainda não entendíamos por que éramos os convidados de honra. Começaram os discursos e libações. A palavra sutiã era mencionada frequentemente em conexão com o nosso nome. De repente, a verdade veio à tona.
Após receber os sutiãs, as mulheres decidiram que não poderiam aproveitá-los. Pequenos demais. Alguém teve uma idéia brilhante. Converteriam os sutiãs em bolsas e as venderiam como importadas da America, no outro lado da fronteira, na republica de Togo. A moeda togolesa era garantida pela França e facilmente convertida em dólar americano. O design da bolsa era simples. Separavam os bojos do sutiã, bordavam e costuravam em forma de bolsa. Reutilizavam as alças. A etiqueta, o mais importante, “made in USA”, fixada no lado externo da bolsa. Um sucesso total. Venderam todas as bolsas, converteram o lucro em dólar americano e adquiriram bens e serviços que os vilarejos necessitavam. O povo decidiu as prioridades. Nem todos os sutiãs foram convertidos em bolsas. Reservaram alguns deles para ser usados pelas adolescentes, durante as visitas de estrangeiros e catequistas. Um doador feliz, sempre volta.
As mulheres transformaram uma doação equivocada em um instrumento de desenvolvimento dos seus vilarejos, algo que programas de ajuda econômica não haviam logrado com todos seus experts e recursos.
Gana 1981
Palmari H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores
Crônica publicada originalmente no livro “Nem aqui, nem ali, nem acolá”