O voo dos colibris

Contemplávamos nosso jardim enquanto percorríamos a longa estrada de verões passados. Ar úmido e seco com cheiro de maresia, proporcionando momentos de tranquilidade exaustiva. Sinos do jardim emitindo sons tímidos, quase imperceptíveis. Gotas d’água escorrendo de flores recém regadas. Converteríamos todas as vicissitudes acumuladas no trabalho ou na escola em busca de uma trégua humanitária no final da semana. Voltaríamos em dois dias aos obstáculos da gincana infernal assolando a humanidade. Tráfego desorganizado e conflitivo, ruas pobremente pavimentadas, aparelhos de refrigeração ineficientes e mal estar físico generalizado. Passagens pela Disneylândia do cotidiano enfeitado pelo poder público e as grandes marcas. Combustão atmosférica e a banalidade do veraneio criando pessoas impacientes demais para pecar com o mínimo de competência. Talvez cansados demais para amar alguém além da brisa do momento, romances de verão.

Observamos de soslaio um pequeno pássaro voando sobre uma touceira de rosas vermelhas, no lado oposto do jardim. Plantadas em uma das últimas visitas da nossa mãe, lembrança de tempos felizes. Movendo-se intempestivamente à nossa aproximação. Pairando sobre o nosso jardim, um pequeno colibri de cor verde metálico. Cabeça, asas e cauda formando uma cruz justaposta contra a imensidão do céu azul. Alma dos guerreiros astecas retornando à terra ou o ente predestinado a salvar a humanidade da fome dos índios Hopi do Arizona? Colibris e mistérios voavam juntos, nossa fascinação por eles começou naquele dia ensolarado. Parte do nosso cotidiano, bem longe dos enigmas escondidas nas linhas e geóglifos antigos localizados no deserto de Nazca, no sul do Peru.

Colibri azul voando em direção ao bebedouro de néctar do nosso jardim. Pairando timidamente diante do receptáculo, como se verificando seu conteúdo. Repentinamente começando movimentos aéreos intricados, coreografia inusitada cheia de mergulhos ou ascensões. Ora defendendo seu território, ora impressionando uma fêmea. Pás-de-deux mágico no romance ou bailado triunfalista após vitória nos embates territoriais. E assim contemplávamos os voos dos colibris. Éden sobre uma torre de concreto, nosso jardim um refugio para sobreviventes da urbanização predatória e a escassez de fontes de néctar.

Palmarí H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores