O trigo dos outros…

Dor eloquente de um pai, uma filha já não existe. Perdão minha filha, porque apesar de ter lhe feito acreditar que o mundo é dotado de mais trigo do que joio, no nosso Brasil, muitas vezes os trabalhadores responsáveis pela retirada do joio do meio do trigo falham, e, consequentemente, o bom e saudável trigo é injustamente destruído. Palavras sábias de uma pessoa que valoriza a vida e o poder do perdão. A irracionalidade do perdão confrontada à racionalidade da vingança. Quando vamos aprender a separar o trigo do joio? Quando vamos assumir que o nosso silêncio é o maior cumplice nas mortes prematuras causadas por pessoas embriagadas? Somos copilotos…

Vivemos com as tragédias humanas e a dor que se espalha exponencialmente pelas nossas ruas. Consciência comum entorpecida. Temos que chegar em primeiro lugar, seja qual for o custo. Os demais, que esperem. Permitimos que a nossa avenida principal, decorada por árvores plantadas nos dias tranquilos de alhures, se transforme em via dolorosa. Pessoas inocentes enterradas em sepulcros imaginários, vítimas da nossa indiferença. Turismo macabro. Aqui morreu fulano, acolá morreu sicrano. Só nos falta a presença das cruzes de beira de estrada. Os carros passam…

Motorista supostamente embriagado causou a morte de dois jovens, em uma das principais encruzilhadas da cidade. A mídia e os tabloides dedicados à difusão das tragédias do picadeiro das nossas ruas demandaram justiça imediata. Políticos de todos os matizes e tendências expressaram alarde, mais uma vez, sobre o que está acontecendo.

Dia cinzento. Barulho confortante dos pingos de chuva. Embarcamos no tapete mágico, revisitando lugares e estações. Buscando respostas para os que perderam tragicamente seus parentes e filhos. Encontramos uma resposta na Califórnia, ano 1980.

Adolescente morta, bebê tetraplégico, a mais jovem dos Estados Unidos. Mais vítimas de motoristas embriagados. Mulher chamada Candy Lightner, a mãe da adolescente, tenta obter detalhes sobre a morte da filha. Respostas ambivalentes das autoridades. Fatos generalizados sobre o acidente. Omissão sobre o recidivíssimo, autor preso três vezes por dirigir sob a influência do álcool. Decidiu naquele momento formar uma organização para combater ao problema. Desta forma nasceu MADD (mães contra dirigir embriagado), nome pronunciado mad, que significa irado. Traduzia bem o que sentia no momento…

Candy embarcou em uma campanha nacional propagando sua ideia e motivando a outras mães. Conheceu em Cindy Lamb, a mãe do bebê tetraplégica, em uma das reuniões. Converteu-se em sua fiel aliada. Criaram uma das mais eficientes e respeitadas organizações sociais dos Estados Unidas. Campanhas e lobby pela aprovação de legislação aumentando a idade legal para o uso de bebida acima de 21 anos. Uso de bafômetros que travam a ignição dos carros de pessoas condenadas por dirigir embriagadas; responsabilidade legal de estabelecimentos ou pessoas que servem bebida a menores de 21 anos ou a pessoas visivelmente embriagadas. Estima-se que tais medidas são responsáveis por poupar mais de 300.000 vidas desde a sua fundação.

A MADD mobiliza a sociedade em campanhas para a prevenção e educação de pais e filhos sobre as consequências de dirigir embriagado. Apoio às autoridades responsáveis pelo policiamento das ruas e estradas. As vítimas e suas famílias recebem cuidados profissionais.

Trinta anos de luta e ainda restam dois milhões de motoristas que dirigem embriagados nas estradas americanas. Sabemos quantos no Brasil? Onde está a nossa ira?

Ouvimos pais falando orgulhosamente sobre filhos que bebem mais que eles e ainda conseguem rebocá-los. Outros riem enquanto motociclista visivelmente embriagado transita entre a calçada e a ciclovia do Cabo Branco. O trigo dos outros e o joio de muitos pais…

Palmarí H de Lucena palmari@gmail.com