Na primeira vez que chegamos ao aeroporto de Acra, tivemos a sensação que estávamos perdidos em uma viela da Babilônia. Lugar barulhento. Uma cacofonia de sons, línguas e dialetos incompreensíveis. Pessoas de estaturas e portes diversos usando todas as combinações de cores e trajes, possíveis e imagináveis. O aroma pungente de azeite de dendê no ar. Música ao vivo, sempre acompanhada por dançarinos calçando tênis ou havaianas de segunda mão. Doleiros e carregadores assediando todos passageiros, ninguém escapava.
O retorno em 1981 foi diferente. Havia ocorrido um golpe de estado no Réveillon. Jerry Rawlings, um tenente aviador e quatro companheiros haviam derrubado o governo civil, eleito há um ano. O povo estava frustrado com a corrupção penetrante e a inércia do governo em controlar a inflação. Interrompemos nossas férias no Brasil. Voltamos imediatamente para Gana. Era necessário organizar um programa de ajuda humanitária de emergência, para mitigar os efeitos da falta de alimentos e remédios em todo país.
Tudo havia mudado ao chegarmos. Nossa aeronave foi escoltada por vários veículos blindados até o terminal. Soldados armados entraram e silenciosamente examinaram os documentos, as faces e a bagagem de mão de cada passageiro. Três longas horas de silencio. O calor quase insuportável. Desembarcamos. A cor verde-oliva predominava. O aroma de azeite de dendê mais forte agora. Os soldados tinham fome.
O país estava em crise, às prateleiras vazias. As únicas mercadorias disponíveis nos supermercados eram preservativos, pulseiras de relógio e latas de espaguete made in Bulgária, com data de vencimento de anos atrás. Na rua, um verdadeiro cabo de guerra entre os soldados, açambarcadores de secos e molhados, operadores no mercado negro e contrabandistas. A palavra “kalabuli”, corrupção no dialeto Akan, explicava tudo.
Programa de ajuda humanitária organizado. Era hora de cuidar das nossas próprias necessidades. Dirigimos-nos a Lomé, na vizinha republica de Togo, para comprar alimentos e outras necessidades básicas. Saímos cedo, para não violar o toque de recolher. O primeiro sinal de problema aconteceu no meio do caminho. De repente, ouvimos o estampido seco e contínuo de metralhadoras Kalashnikov, vindo de ambos os lados da estrada. Olhei inquisitivamente para meu motorista. E agora, Jacques? Não respondeu. Empurrou a mão na buzina, aumentou a velocidade e dirigiu-se diretamente a área do tiroteio. As armas silenciaram. Atravessamos a junção, o combate recomeçou. Quando estávamos distante do local, gritei: “… você está maluco? Quer nos matar?…” Respondeu tranquilamente: “buzinei para intimidá-los, para dar a impressão que alguém importante estava no carro. Os soldados quase sempre decidem cessar fogo para evitar a possibilidade de matar a pessoa errada, alguém importante…” Um “big man”, em qualquer país da África, é considerado algo mais letal do que a bala de um soldado da facção inimiga. Quando os elefantes brigam, o capim sofre, assim dizem.
Lomé era como um enorme supermercado. Tudo importado. Baguettes diretamente de Paris, no vôo da Air France. Terminamos nossas compras rapidamente. Tínhamos que atravessar a fronteira de volta em tempo de chegar a Acra, antes do temido toque de recolher às 18 horas. Tudo havia mudado no local do tiroteio. Mulheres vendiam frutas, refrescos e bolos de mandioca. Música no ar. Nenhum vestígio de combate armado, de mortos ou feridos. Vários soldados passeavam entre os civis, fazendo compras, flertando com as moças. Tinham fome. Fuzis a tiracolo, apontando para o chão. Silenciosos. Perguntei a uma vendedora o que havia passado no local pela manhã. Deu um olhar furtivo na direção dos soldados. Ofereceu um bolinho de mandioca com peixe seco ao molho de dendê. Com um sorriso afável sugeriu, “obruni” – estrangeiro branco, você tem uma longa jornada adiante. Deu um muxoxo, encolheu os ombros com indiferença e falou baixinho, “Kalabuli”!
Gana 1981