Homem magro, vestido modestamente. Acordeão em péssima condição, tocado sem grande interesse. Doações na caixa preta na calçada. Pessoas passam sem prestar atenção ou colocar moedas. Acordes de “Mi Buenos Aires Querido”, versos cantados pausadamente. Sabor de idos dias felizes, misturado com nicotina e vinho barato. Paixão portenha abrigando a depressão urbana, sob o manto dourado de Carlos Gardel.
Som de moedas caindo na caixa. O músico anima-se, ensaia pequenos passos de tango enquanto toca. Turistas armados de sacolas cheias de compras, caminham apressadamente. Barulho das rodas das maletas recém adquiridas. Litania de vendedores e cambistas tentando interagir com clientes. Ofertas na língua franca das ruas – todas as variedades e sotaques. Encolhendo os ombros, o músico suspirou como se dizendo: só tenho tango para vender.
Vultos genéricos movendo-se furtivamente na luz baixa do anoitecer de Buenos Aires. Decadência e pobreza empilhadas nas esquinas da vida. Homens e mulheres bailando o tango da sobrevivência em frente de bares, restaurantes e teatros. Ninguém sabe de onde vêm ou aonde vão. Casa número 000 de uma rua sem nome. “Descamisados” de alhures, “cartoneros” de hoje. Sobrevivendo à perversidade da globalização, criando uma economia paralela, com lixo reciclável.
Trânsito movimentado ao redor do Obelisco. Uma cidade sempre acordada na penumbra da noite. Corpos grudados contra o rodapé dos edifícios. Crianças brincando. Famílias empilhando material reciclável em cada esquina. Esperando por compradores, uma legião de100.000 catadores de lixo, sem benefícios sociais, seguro ou equipamento de proteção industrial. Transformando a Argentina em um país exportador de cartão reciclado.
Olfatos anestesiados pela miséria e matéria orgânica em decomposição. Reciclando latas e cartões, gerando renda e empregos para milhares de excluídos. Aqueles que deveriam ser beneficiários de programas de alivio da pobreza, das Metas do Milênio, aliviando, sozinhos, sua própria miséria. Pessoas humildes são verdadeiros outdoors daquela pobreza que gostaríamos que fosse invisível, catando lixo a céu aberto. Visões diárias que nos envergonham. Dão-nos pena, nada mais. Poucos os consideram ou os aceitam como protagonistas na luta pela sobrevivência do planeta. Inadvertido paradigma do desenvolvimento sustentável…
Palmarí H de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores