O ratinho que gostava de chocolate…

Ratinho observava o tráfego do meio-dia, pés plantados firmemente na linha divisória das duas faixas da avenida. Proteção fumê obliterava parcialmente as fisionomias das pessoas nos carros. Camafeus urbanos esperando impacientemente a troca de luzes no semáforo. Súplicas bem ensaiadas não estavam tendo o efeito desejado. Ninguém notava sua presença. Chovia copiosamente. Pedras de metralha, moeda de 25 centavos, garrafa de plástico e um ovo de páscoa. Patrimônio portátil. Sentia-se cansado, sonolento, deprimido. Ondas de angústia invadiam seu corpo de menino-homem. A capilaridade da miséria humana. Abstinência forçada por uma dívida com o vendedor de crack, que andava à sua procura na praia. Decidiu cheirar thinner ou éter. Chocolate, só depois…

Rumou em direção à loja de conveniência do posto de gasolina mais próximo. Descalço, caminhando apressadamente, propulsionado pela agonia quase intolerável da ausência da droga. Cabelos finos e ralos, cor laranja-claro de má nutrição. Corpo raquítico coberto do pescoço aos joelhos por uma camiseta GG, tamanho adulto. Miséria camuflada pela caridade de um freguês da casa lotérica.

Chegou ao destino. Sorriso tímido escondendo a amargura da inocência perdida. Mãos estendidas na direção dos clientes que entravam e saíam da loja. O cheiro de carburante agradava as narinas inflamadas. Necessitava urgentemente comprar o thinner. Conseguiu o que queria em meia hora. Fim de mês, dinheiro na praça. Sentado na calçada, contava moedas. Outro adolescente se aproximou. Transação realizada. Seguiram juntos em direção à beira-mar. Junior Ratinho instalou-se confortavelmente sobre papelões à sombra de uma árvore. Cobriu o nariz com o colarinho, inalou repetidamente os vapores do solvente. Dormiu tranquilo. Cansaço, fome e medo haviam desaparecido. Espalhados na areia, pedaços de ovo de páscoa. Migalhas. Aproveitando o sono do amigo, seu companheiro roubou o que restara do thinner. Passaram-se dias, reapareceu. Dizendo-se armado e ameaçando a pessoas. Errático e irracional. O menino gentil e risonho havia desaparecido no nevoeiro do carburante. Tinha medo. Outro adolescente tentou violá-lo; defendeu-se com uma arma branca ferindo o seu algoz. Temia retaliação. Doze anos de idade, dois inimigos letais no seu rastro para ajuste de contas. Rumores circulavam sobre o desaparecimento ou a morte de Junior Ratinho. Pessoas na área estavam preocupadas. Surgiram outras teorias: estaria em um abrigo ou teria voltado para Campina Grande. Logo depois foi visto em uma esquina frequentada por meninos de rua. Pelo menos está vivo, suspirou uma das suas benfeitoras. Um saco de roupas usadas, tamanho infantil, esperava o seu retorno. Notaram a ausência dele no mercado de frutas. Deca, o flanelinha, desmentia o boato da morte do menino. Visto na rua três dias antes. Parecia tudo normal. O feirante, conhecido como Cris Artista, estava feliz com a notícia. Costumava dar-lhe dinheiro para que ele comprasse pão e café. Voltava sempre para mostrar que havia usado o dinheiro em comida. É um menino bom […] quando começou a frequentar o mercado era muito agressivo. Problema social […] a polícia não pode fazer nada, comentou um policial, sem sugerir uma alternativa. Fim de tarde. Esquina da concessionária. Vulto diminuto movendo-se entre os carros, em sintonia com a troca de luzes do semáforo. Mão direita estendida, olhos suplicantes. Reconhecemos o sorriso. Gosto de chocolate recheado com o veneno das pedras das ruas. Foi a última vez que vimos Ratinho…