Conversamos sobre coisas do passado, quase sempre o passado. Viajando a distância na estrada da memória, sem mapas nem guias. Lembranças de acontecimentos ou pessoas armazenadas virtualmente, sem nenhuma cronologia específica na cápsula de tempo. Mãe e filho e sete décadas de convivência.
Mera menção ao aroma de café batido em pilão. Aroma forte, servido em um bule preto de fumaça. Recordando sua mãe Josefina. Pilando café com manjirioba no quintal. Café donzelo: novo, quente e forte. A primeira xícara, servida a uma vizinha favorita ou a um visitante. Movendo os olhos na direção do topo da cabeça, como se procurando algo secreto, perdido há muitos anos. Mais lembranças surgiam…
Ellen e sua prima pilando sorgo e milho no quintal. Batendo os grãos alternadamente, ao som de uma melopéia que dava ritmo aos movimentos. Parte do ritual do amanhecer na África. O ritmo e a cantoria traziam lembranças de um Brasil distante. As batidas nos seguiram por muitos anos. Algumas vezes deixaram de existir, o progresso havia chegado trocando o ritmo por ruído.
Mulheres sentadas em um semicírculo em um pequeno vilarejo em Gana. Discursão animada sobre o motor diesel que haviam comprado com o lucro das vendas de bolsas, sutiãs reciclados como bolsas, haviam silenciado os pilões. Guardavam todos como relíquias em um quarto de despejo, ainda não estavam seguras do poder e da utilidade do motor. Depois viriam as bombas d’agua, mais progresso. Os dias seriam mais longos, mais tempo para fazer outras tarefas na casa e no campo. Trabalho substituindo trabalho. Estavam entusiasmadas, mesmo assim. Teriam eletricidade eventualmente, escola de alfabetização e creches. Tudo mudaria, até a ingrata divisão social de trabalho que oprimia as mulheres.
Viajamos pela extensão do Mali, país em forma de uma borboleta. As batidas do pilão nos acompanhavam, sempre anunciando o amanhecer. O ritmo, invariável, era idêntico ao que ouvíamos nos quintais das nossas casas, no quintal de Dona Josefina. No futuro, mais progresso, teriam seus próprios motores, que chamavam de a nora que não fala.
Jovem mulher moçambicana discutindo os preparativos para o seu casamento. Esperava ansiosamente pela conclusão das negociações sobre o valor do lobola (dote), a ser pago pela família do noivo. Firmariam a data do enlace após ser lobolada. Receberia um pilão, como ditava o costume, no dia seguinte ao casamento. Gargalhadas ao redor da mesa. A ideia de uma recém-formada em direito, pilando milho todas as manhãs, parecia algo hilário e distante. Quanto ao dote, o senhor progresso ainda não havia encontrado um substituto.
Voltamos às nossas lembranças… Massa para o cuscuz, bolo de milho ou xerem, batida no pilão. Café torrado pilado como o milho e a paçoca, sempre por duas mulheres trabalhando horas e horas no mesmo pilão, estilo caçula. As batidas do mundo globalizado de alhures, pilões trazidos da África pelos navegadores portugueses e postos em uso por índios e negros, silenciados pelo progresso. O aroma e os amanheceres nunca mais seriam os mesmos…
Palmari H de Lucena palmari@gmail.com