As primeiras-damas habitam uma zona de fronteira entre o íntimo e o institucional. Não foram eleitas, mas suas imagens circulam como se o tivessem sido. Caminham ao lado do poder, e ainda que não governem, são percebidas como extensões dele. Seus passos, palavras e até silêncios são monitorados com lupa — em busca de algo que revele o espírito do governo, a alma da nação ou, ao menos, algum tropeço que justifique a vigilância.
Esse escrutínio não é recente, tampouco neutro. Espera-se delas uma combinação quase mágica entre empatia e reserva, leveza e compostura, naturalidade e cálculo. O mais singelo gesto, como um beijo no ombro ou um vestido fora do padrão esperado, pode ser elevado à categoria de escândalo ou falha moral. Assim foi com Brigitte Macron, criticada por romper códigos etários de elegância, inclusive por presidentes estrangeiros — como Donald Trump, que em ocasiões públicas e privadas sentiu-se à vontade para fazer comentários sobre sua idade. Já Melania Trump, por outro lado, teve sua figura estetizada e silenciada, como se fosse um ornamento diplomático. Em ambos os casos, o foco recaiu sobre a aparência, e não sobre a atuação. O comentário sexista é, com frequência, um reflexo de estruturas que esperam da mulher apenas a função de enfeitar — mas sem ultrapassar o limite do protocolo.
No Brasil, o caso de Janja ilustra bem a tensão entre protagonismo e contenção. Primeira-dama engajada, com presença visível em agendas públicas, Janja trouxe consigo uma nova forma de ocupar esse papel. Contudo, suas intervenções — como opiniões expressas em atos oficiais ou postagens interpretadas como político-partidárias — provocaram reações intensas. Em muitos momentos, a crítica parece exceder o campo dos fatos e adentrar o da expectativa: cobra-se dela o silêncio, ou o estilo, que se desejaria para a esposa de um presidente, como se esse papel estivesse rigidamente pré-escrito.
É impossível ignorar, nesse panorama, o viés de gênero. Chefes de Estado homens podem tropeçar em piadas, exagerar em informalidades ou vestir-se de modo inadequado, sem que isso provoque comoção proporcional. Com as primeiras-damas, o julgamento é imediato, muitas vezes implacável. São cobradas por suas ações e, também, por não encarnarem um ideal de perfeição — uma espécie de musa pública domesticada, disponível para sorrir, mas sem voz própria. A crítica estética, nesse contexto, torna-se instrumento de dominação simbólica: a mulher pode ser celebrada ou descartada conforme sua obediência a um padrão que não define.
Mas há uma dimensão mais sensível ainda, que vai além da estética ou da moral. Em cenários diplomáticos, onde cada gesto carrega um código, a quebra de protocolo pode extrapolar o simbólico e produzir consequências reais. Um abraço fora do script, uma declaração improvisada, uma presença inesperada em negociações bilaterais — tudo isso pode gerar constrangimento ou ser interpretado como desrespeito, afetando negociações delicadas e o clima entre representantes de Estado. Nesses espaços, onde as relações são forjadas com cuidado e formalidade, o improviso — ainda que bem-intencionado — pode soar como ruído, dificultando acordos, esfriando diálogos ou alimentando desconfianças.
A expressão de opiniões pessoais em ambientes de alta representação exige, portanto, ponderação. Não se trata de censura, mas de consciência sobre o lugar que se ocupa. Em diplomacia, até mesmo o que não se diz comunica. A palavra fora de hora pode atrapalhar mais do que iluminar. Não é uma questão de coibir individualidades, mas de reconhecer que, ao atravessar o protocolo, corre-se o risco de contaminar com subjetividade o que deveria permanecer institucional.
No fim, talvez o maior deslize não seja apenas das primeiras-damas, mas de todos nós: o de projetar nelas expectativas irreais, cobrar delas papéis que não escolhem completamente, e ignorar a complexidade do contexto em que atuam. É preciso julgar menos e compreender mais; exigir menos máscaras e mais consciência. Afinal, se a representação simbólica é inevitável, o respeito aos códigos que sustentam o diálogo entre nações também o é. Entre a espontaneidade e o protocolo, existe um espaço de equilíbrio — e é nele que, com humanidade e lucidez, essas figuras podem exercer um papel significativo sem que se tornem reféns nem heroínas de uma narrativa que não escreveram sozinhas.
Por Palmarí H. de Lucena