O maestro e o monge

Olhos fixos nas partituras e nos gestos do regente, hino religioso escapando das bocas de jovens africanos. Ensaio do coral da missão católica, nas terras da tribo Éwé de Gana. Serenidade e imensurável satisfação permeando a brancura avermelhada da face do maestro. Movimentos suaves, quase elegantes, os guiavam. Kyrie eleisum viajando pelo céu africano. Falando uma língua estranha, o “yevu”, homem branco, havia aparecido na companhia do bispo. Diziam ser um músico famoso no pais de Pelé. Tenente Lucena, o maestro, vivia em tempo emprestado, o câncer avançando impiedosamente. Vozes africanas na imensidão da savana, distante dos cânticos do verde das florestas de cana de açúcar do seu Brasil. Estava na África, seu grande e talvez o último dos seus sonhos.

Imagem da pequena estante projetando-se no assoalho polido da nossa casa, rangidos da madeira velha acompanhando as notas musicais tocadas precariamente por um jovem clarinetista. Professor acompanhando o progresso do aluno, um jovem clarinetista, seguindo seu desempenho com batidas discretas do dedo indicador no antebraço. Pausa, o estudante parecia cansado. Harmonia, melodia e ritmo. Longa conversa sobre o significados das três palavras. Música é repetição, busca incansável pela perfeição era o mantra do professor. Repetiria o exercício muitas vezes.

Conversávamos um dia sobre Esperanto, língua universal criada pelo polonês Lazarus Zamenhof, motivado pelos conflitos étnicos na sua pátria. Como muitas das nossas conversas, a discursão convertera-se rapidamente em uma aula de música ou algo musical. Comentava que o pentagrama e as notas musicais criadas pelo monge Guido d’Arezzo no século IX, era a única forma de comunicação universal que sobrevivera a mudanças e conflitos por mais de um milênio. Músicos se comunicavam mesmo falando idiomas diferentes. O maestro e o monge se entediam, poliglotas da mesma língua.

O coração é o metrônomo da vida, declarou Villa-Lobos em João Pessoa nos anos cinquenta. Foi no coração, que o Tenente Lucena encontrou uma maneira de ensinar música a surdos-mudos, podiam sentir as vibrações musicais no corpo e o ritmo no coração. Formaram uma banda musical, antecipando-se décadas à criação de um método de aprendizado formal para os deficientes. Guido d’Arezzo e Villa-Lobos haviam mostrado o caminho, o mestre seguiu com seu coração. Morreu ouvindo música religiosa, a música continuou movendo seu mundo.

Palmarí H de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores (U.B.E.)