O Maestro e Margarida…

O Maestro e Margarida…

Casa de espetáculos Winter Palace, um lugar de São Francisco. Totalmente lotada. Ocupada por um exército multicolorido – nas peles e nas roupas. Flores abafando o clamor da ira dos excluídos. Hippies comungando inconfortavelmente com a militância do poder negro. Momento de meditação transcendental, quebrado por um anunciante. “Ladies and gentlemen, please welcome the Jimi Hendrix Experience”. Acordes de uma guitarra crua, psicodélica. Mistura de ácido e soul. Criança da macumba enfeitiçando a massa. Névoa púrpura, cheirando a maconha e suor, ofuscando o arco-íris. Ano de 1968, por dentro e por fora…

Acompanhávamos um grupo de jovens, longe do palco. Ilha de caqui e verde-oliva. Negros, mexicano-americanos e asiáticos, dançando animadamente. Ouvidos atentos aos solos de blues no meio do pandemônio eletrônico. Não importava a distância ou o local inadequado na audiência. Sentiam-se privilegiados, estavam presentes. Presentes graças a uma generosa doação de ingressos por uma cadeia de televisão norte-americana. Prêmio pela participação em um documentário sobre a saúde mental do adolescente. Divirtam-se!

Mulher jovem, mistura de índio navajo e mexicano. Dedilhando uma guitarra acústica, sentada no chão. Parte do grupo, fora do grupo. Metade do concerto. Todos dançando ao seu redor, como se fosse o guia espiritual de um “pow-wow”, ritual dos índios da sua origem. Chamava-se Margarida. Repetindo uma canção que compôs durante sua internação em uma unidade psiquiátrica. Triste, atônica, monótona. “Acorde-me quando eu morrer”, assim se intitulava. Concerto atingindo os decibéis máximos. Solos de blues, rock, r&b. Pouco de algo para todos, menos para ela. Protegida do caos ao seu redor pela esquizofrenia que a torturava. Imersa no seu inferno particular…

Produtora de documentários. Urbana, eficiente, charmosa. Tínhamos algo que havia atraído o interesse de uma cadeia de televisão. Jovens previamente envolvidos com drogas e atividade anti-sociais, participando de obras sociais, programas de prevenção e reabilitação. Agentes sociais da comunidade trabalhando com profissionais de saúde mental, orientação vocacional e capacitação. Transformado as vidas de ex-pacientes psiquiátricos, egressados de programas de tratamento de adicção a drogas, dependência de substâncias ou em risco de envolver-se em atividades criminosas. Motivadores de outros jovens, compartindo experiências, propondo alternativas criativas de estilos de vida e desenvolvimento pessoal.

Completamos a filmagem. Produção precisava de um tema para a trilha sonora. Conversamos com Margarida sobre a possibilidade de usar sua canção. Não gostou da idéia. Maestro ouvindo a pequena música, embevecido. Tamborilando na superfície da mesa, como se fosse os baixos de uma sanfona imaginária. Pediu a guitarra, começou a improvisar um arranjo clássico, barroco. Compositora ouvindo como se não estivesse ouvindo. Chorando baixinho, soluçando. Suspiro profundo, sorriso tímido, “nunca pensei que minha música fosse bonita”. Outra vez…

Ano seguinte em Nova Iorque. Produtor procurando freneticamente pele trilha sonora do documentário. Programado para exibição em cadeia de televisão da NBC, em poucos dias, organizar músicos, ensaios e gravação, queria uma solução prática. Maestro chegando à cidade, com um arranjo clássico para cinco instrumentos. Gravaria cada um deles separadamente. Tocaria todos, não seria necessário chamar outros músicos… Mixagem e roteiro final completados, um dia depois. Os demônios de Margarida haviam se transformado em música divina, divina música do Maestro Sivuca…

Jimi Hendrix morreu em 1970, com ele o último grande solista da guitarra. Margarida foi internada em um hospital psiquiátrico, pedindo para ser acordada quando estivesse morta. Nunca mais se levantou – como se pertencesse à noite de Maupassant… Perdemos Hendrix, Margarida e o Maestro Sivuca. Como profetizava o refrão melancólico da esquizofrênica canção transformada em sinfonia, ficarão aqui para sempre: “will be here forever”, Hendrix, Margarida e o Maestro Sivuca…

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores

São Francisco 1968