O homem que roubava jornais para Nelson Mandela

Punhos irados se abriram, mãos se estenderam. Havia chegado a hora de construir uma nova África do Sul.

O ano de 1989 foi o começo do fim de um sistema de leis racistas, que institucionalizaram desigualdade e segregação racial na África do Sul, por quatro décadas. As leis de apartheid, ou seja, “separação” ou “identidade separada”, impuseram a dominação da minoria branca, descendentes de colonos holandeses e britânicos, sobre pessoas pertencentes a outros grupos étnicos, majoritariamente à população negra.

O embargo internacional, a desvalorização do ouro e da moeda nacional, ativismo político nas cidades e nas ruas, haviam quebrado a espinha dorsal do regime. O Partido Nacional não tinha mais como assegurar o domínio e o desenvolvimento contínuo da economia, em favor da população branca. O desemprego, a herança mais nociva do sistema de apartheid capitalista, afetava todos os grupos, direta ou indiretamente. O presidente sul-africano Pieter Botha deu o primeiro sinal. Reuniu-se oficialmente com Nelson Mandela, o presidente do Congresso Nacional Africano (ANC), para organizar os preparativos para sua libertação. Mandela cumpria pena de prisão perpétua desde 1964. O novo presidente, F. W. de Klerk, aboliu o sistema de apartheid, libertou os prisioneiros e legalizou os partidos banidos, em Fevereiro de 1990. Nelson Mandela propôs uma constituição multirracial, criando uma nova África do Sul, de todos, para todos.

A população excluída, através de clubes de poupança informal, chamados de “stokvels”, mobilizava recursos para atividades econômicas, como única forma até 1990. Uma contribuição mensal fixa. Amigos, parentes ou vizinhos, todos iguais. Devido às restrições racistas e à pobreza do povo, paróquias católicas formaram pequenas cooperativas de crédito, geralmente dirigidas por párocos. Um muro branco. Uma folha de parreira. Na Cidade do Cabo, uma associação de cooperativas, conhecida como SACUL, funcionava no Bureau de Assistência Social da Igreja Católica (CWB). Prestes a fechar as portas em 1991, devido à inadimplência, falta de poupança, ou reservas. Só uma mudança drástica poderia salvar a organização. Kwedi Mkalipi, ex-prisioneiro político, foi nomeado o primeiro presidente laico.

Os doadores queriam mudanças imediatas. Um negócio totalmente aparte das paróquias. Fixamos os parâmetros da reforma, reestruturação e modernização. O movimento cooperativo canadense mobilizaria o capital. Tudo concordado. Negócio concluído. Despedimo-nos. Notei então, um fato curioso. Os jornais e revistas que havia trazido comigo, haviam desaparecido.

O perfil profissional de Kwedi Mkalipi não era de alguém capaz de liderar uma cooperativa. Esteve encarcerado por vinte anos na Prisão de Robben Island, por atividade antiapartheid. Libertado em 1985, após cumprir sua pena. Seu grupo, o Congresso Pan-africano (PAC), se opunha à criação de uma constituição multirracial. Tinham um slogan “uma bala para cada branco”; propunham expulsá-los do país. Não era membro do ANC de Mandela.

Encontramo-nos com Nelson Mandela em Harare. Sua primeira visita ao Zimbábue. Discutimos um programa para a capacitação profissional e retorno dos guerrilheiros desmobilizados da ANC para a África do Sul. Propusemos a SECUL como uma das fontes de microcréditos para os ex-combatentes que quisessem abrir seus próprios negócios. A menção do nome Kwedi Mkalipi, causou uma reação entusiástica em Nelson Mandela. Lembrou dos tempos que haviam estado juntos na prisão. “Ele era nosso ladrão dos jornais dos carcereiros…” As publicações eram usadas como material didático na universidade informal, criada para educar os prisioneiros. Kwedi Mkalipi havia se formado em História e Khosa, o dialeto tribal de Nelson Mandela. Textos racistas, para fomentar uma mentalidade multirracial…

Meses depois, Kwedi Mkalipi nos visitou em Harare. A situação financeira da SECUL havia melhorado substancialmente. Estabeleceram contato com os ex-combatentes. Formaram parcerias. Um homem sem rancor. Com a mentalidade de todos a bordo. Não havia tempo para revanchismo. Precisavam criar uma sociedade justa, multirracial. As balas para os brancos não eram mais necessárias, a “guerra” havia terminado…

Conversamos longamente sobre seus dias na prisão. Depois do nosso jantar de despedida, notei que meus jornais novamente haviam sumido…

África do Sul 1991