O guerrilheiro de múltiplas faces

Em 1990, a África do Sul era a única nação do mundo, que incorporava racismo na sua Constituição e a cor da pele como fator primordial na categorização dos cidadãos, na hierarquia social. Possivelmente um dos aspectos mais cruéis do regime de “apartheid”, estava na Lei do Passe, em vigor de 1948 até 1990. Instrumento usado para privilegiar a minoria branca e institucionalizar a discriminação contra os negros, representando 70% da população, e outras etnias. Um passe para permanecer em um local reservado para brancos, só podia ser emitido para quem tinha trabalho aprovado. Esposas e crianças não podiam ser beneficiárias. O documento incluía dados biométricos e outras informações sobre o caráter, comportamento do portador, fornecidos por uma pessoa branca. Se alguém não possuísse um passe, estava sujeito à prisão imediata, julgamento sumário e “deportação” para um Bantustão, território reservado para negros, em zonas de baixa produção agrícola e parcas possibilidades econômicas.

No dia 10 de fevereiro de 1990, o prisioneiro mais famoso do mundo, Nelson Mandela, foi libertado na África do Sul, o que desencadeou uma serie de decisões políticas, que eventualmente eliminaria todas as leis de separação racial. O Congresso Nacional Africano (CNA) liderado por Mandela, ao mesmo tempo, começou o processo do desarme e reintegração dos combatentes da resistência armada do CNA, conhecido como “Umkhonto we Sizwe”, a lança da nação. Todos acantonados em áreas remotas nos países da “linha de frente” contra o apartheid, na África Austral.

Iniciamos um programa de capacitação e retorno à vida civil para combatentes desmobilizados, em parceria com o CNA. O primeiro estágio do retorno à África do Sul começaria em Harare, capital do Zimbábue. Todos os participantes seriam documentados e matriculados em um dos cursos oferecidos por nosso programa. A idéia principal era formar pessoas capazes de abrir suas próprias microempresas, ao chegar de volta na África do Sul. Concordamos que um período de seis meses seria adequando para começar a readaptação dos ex-combatentes à vida civil.

Observamos o homem na recepção. Não tinha nem o porte nem a estatura de um combatente. Pessoa afável, conversador. Sorriso fácil. Parecia inconfortável com seu traje civil. Terno bem usado, bem cuidado. Pôs no balcão uma bolsa plástica, que aparentava conter documentos. A atendente parecia confusa com o conteúdo. Muita papelada. Manuseou todos rapidamente, sem olhar para o homem. Como um cobrador de pedágio, contando moedas. Encaminhou-o na direção do nosso gabinete.

O homem reapareceu na nossa porta. Toc-toc discreto. Entrou pausadamente. Bateu continência. Estendeu a mão e em seguida anunciou: “Meu nome é Arafat, Arafat Havana, combatente do CNA”. Abriu a bolsa, conforme orientação, derramando o conteúdo no birô. Examinamos os papeis cuidadosamente. Um verdadeiro pout-pourri de cartões de identidade, passaportes, carteiras de habilitação. Todos cheirando a mofo. Amarelados. Nomes, lugares e idiomas diferentes. O denominador comum era a foto do homem na nossa frente, com múltiplas aparências… Após um período de silencio, o homem falou, “… Arafat Havana é o meu mais recente nome de guerra. Tenho um documento com o meu verdadeiro nome”…

Explicamos que tudo tinha de ser feito com sua identidade legal. O diploma do curso não podia ser emitido com um nome de guerra. Tirou do bolso do paletó um documento plastificado. Um passe sul-africano. Herança do sistema de apartheid. Coincidentemente, o único documento que estabelecia sua verdadeira identidade. Nosso silencio, um sorriso cúmplice, esconderam a ironia do momento. Voltaria à sua pátria, em poucos meses, um homem livre. Ex-combatente de um exército vitorioso. Havia por quase duas décadas recebido treinamento militar no bloco soviético e em Cuba; lutando em guerras de liberação em outros países da África. Venceu sua grande guerra sem nunca combater na África do Sul. Uma vitória moral…

Zimbábue 1990