Presenciamos nossa primeira cena de justiça das turbas, duas semanas depois de nossa remoção para Acra. Linchamento de um homem, mais de vinte pessoas, no outro lado da estrada. Jacques, nosso motorista, estacionou o carro na encosta, removeu um cano da mala e atravessou a estrada em direção do acontecimento. Atingiu a pessoa que estava no chão, varias vezes; regressou lentamente. Protestamos energicamente. “Bater em ladrão não é crime”, justificou assertivamente. Testemunharíamos eventos similares, em outros países…
Desordem imperava em Gana. O país havia descido às profundezas do subdesenvolvimento. Corrupção e insegurança substituíam a euforia e o otimismo da independência. Políticas promovidas por Kwame Nkrumah, fundador e chefe de Estado por nove anos, devastaram a economia nacional. Cinquenta empresas paraestatais ou mais, foram criadas em cinco anos, negligenciando o setor agrícola, levando o país à borda da bancarrota. Estimava-se que o poder aquisitivo do trabalhador havia retrocedido ao nível de 1939…
Promovendo sua visão de Panafricanismo, Nkrumah agravara ainda mais a situação econômica do país, apoiando financeiramente movimentos de liberação nacional. Aspirava estabelecer Gana como uma potência emergente no continente africano e entre os países Não Alinhados. Declarou-se Presidente Vitalício em 1966. Foi deposto por um golpe de estado logo depois, quando estava ausente do país em uma das suas múltiplas missões. Seguiram-se quatorze anos de ditaduras militares…
Um novo governo, eleito democraticamente, tomou posse em 1980. Os gastos extravagantes e excessos de Nkrumah e dos ditadores militares, haviam deixado uma marca profunda no país. Judiciário e Policia no ápice de todos os esquemas de corrupção e abuso de autoridade. O povo dizia-se cansado da democracia. Alguns lamentavam a partida do colonizador inglês…
Linchamentos e execuções extrajudiciais eram sintomas da descrença popular. O civismo e o patriotismo haviam desaparecido. O cinismo permeava a conduta nas relações interpessoais e com as instituições nacionais. Caso alguém gritasse “ladrão” e apontasse para um transeunte, a turba tomava conta do resto. Soldados e paramilitares organizavam barricadas para extorquir propinas; navios com cargas de ajuda humanitária eram saqueados; o mercado negro parecia a única forma de conduzir transações comerciais. Outro golpe de estado…
Regressávamos de Lomé, no Togo. Viagem semanal para adquirir alimentos. Deparamo-nos com uma barreira militar a cinquenta quilômetros de Acra. Carabinas apontadas em nossa direção. Descemos do veiculo, como instruídos. Fomos escoltados até uma pequena palhoça, distante da estrada e acusados de crimes contra a economia do país. O julgamento e sentença ocorreriam onde estávamos. Mencionaram uma multa, sem especificar a quantia. Éramos reféns…
Horas com o cano da carabina colado à cabeça. Subitamente o guarda nos avisou que poderíamos fumar ou urinar, se desejássemos. Depois de um tempo, mudou a posição da arma. Apontava contra nossos pés, para evitar fuga. Relaxou, pediu um cigarro. Prometemos não tentar fugir. Contemplou nossos sapatos. Samellos, made in Brazil. Anunciou abruptamente, “estão confiscados”…
Oficial seguido de vários soldados apareceu no local. Pediram explicações ao nosso guarda. Longa discussão. Folheavam nossos documentos. Dirigiu-nos a palavra pela primeira vez, pedindo explicações sobre as mercadorias no carro. Confirmou nossa identidade. Informou-nos, sem muita conversa que estávamos livres para continuar a jornada. Devolveu nossos sapatos. Retornando ao nosso veiculo, ouvimos um grito. O soldado contorcia-se no chão, com coronhadas de carabina e pontapés na cabeça e torso. Nosso captor banhado em sangue. Voltamos temerosos. Pedimos ao oficial que parasse, não havíamos sido maltratados. Respondeu-nos severamente que o soldado estava sendo punido por ser um ladrão e que não devíamos intervir com a justiça revolucionária. Estava protegendo nossos “direitos humanos”. Linchamento oficial…
Gana 1980