Edifício pequeno, desenhado sem grande atenção à estética. Decadência pintada em múltiplas tonalidades de pastel. Estávamos no café do terraço do hotel. Pessoas sentadas precariamente em cadeiras de plástico. Garçons servindo “bubra”, cerveja nacional, sempre morna. Demanda excedia a capacidade do único refrigerador. Raças, idades e reputações diversas, ocupando o mesmo espaço. Observando o vai-e-vem, conversando discretamente ou lendo alguma coisa. Grupos de duas ou três “ashawos”, prostitutas, monitorando a cena em câmera lenta, com desinteresse profissional. Mendigando agressivamente na calçada, dois deficientes mentais, Harrison e Charity. Apareciam em turnos diferentes, despidos. Pequena concessão ao pudor público..
Penta Hotel, quarto 301, residência temporária ao chegarmos a Gana, nosso primeiro posto na África. O ano era 1980…
Notamos um homem grisalho nos observando com interesse. Aparentava ser Italiano. Flanqueado por duas mulheres jovens de porte volumoso, vestindo sarongs coloridos e camisetas, sem definição precisa de detalhes anatômicos. Um garçom voluntariou que o cliente era um “obrouni”, homem branco importante. Suas companheiras chamavam-se Jewel e Santa, as ashawos mais cobiçadas e solicitadas pelos clientes estrangeiros e funcionários da Alfandega e da Emigração.
Pediu permissão para sentar-se. Identificou-se como Carlo Vita, presidente de uma firma de importação e exportação, sem mais detalhes. Falando em tom confidencial que suas “associadas” souberam através de conexões que nosso programa de ajuda humanitária importava roupa usada dos Estados Unidos. Identificando-se como católico, queria fazer uma denúncia, nossa roupa estava sendo vendida nas sulancas e “outlets” populares. Citou como exemplo, a camiseta de Jewel, originaria de uma universidade americana com a frase “Cogito Ergo Periculosus”. Revelando na ocasião, que também importava roupa usada, conhecida como “obrouni wa wo”, roupa de defunto branco. Tinha uma proposta comercial a fazer-nos…
Falando com voz enfadada, reclamava que as autoridades só estavam permitindo a importação de roupa usada, da ajuda humanitária. Protecionismo do governo e a caridade cristã conspirando contra sua empresa. Pequenos negócios e revendedores estavam fechando as portas, despedindo empregados. Propôs que lhes vendêssemos nossa mercadoria. Argumentou que a margem de lucro seria maior, sobre nossa roupa não incidiam impostos e com frete marítimo subsidiado. Geraríamos empregos. Acordo de cavalheiros. Dividiríamos o lucro meio a meio, que seria depositado em um banco no Panamá ou no Caribe, a nosso critério, por facilitar a transação. Parceria rejeitada. Protestos veementes do pretenso sócio.
Discutimos a distorção da finalidade das nossas doações com a conferência episcopal e autoridades governamentais. Surpresa geral! Todos tinham conhecimento. Roupa usada, doada ou vendida, estava prejudicando a indústria têxtil nacional. Decidimos descontinuar o programa.
Ao longo do tempo, observamos que as doações descaracterizavam a população. Gradativamente, a indumentária nacional trocava o tradicional pano africano por têxteis industrializados. Mulheres vestidas com camisetas com inscrições das mais bizarras possíveis, como “Sex Bomb”, “Voulez-vous coucher avec moi?” “Hot Mama”, “Hungry for Love”, “100 years of women on the top”, “Torpedoes’”. Anciões de tribo trajados com sobretudo feminino e golas de faux fur. Tristemente, o problema não parece ter solução. Subsídios à indústria algodoeira norte-americana; pobreza e corrupção; importações de roupa usada ou chinesa, de baixa qualidade, conspiram para o subdesenvolvimento continuado da indústria têxtil africana.
Passados trinta anos, a comercialização de roupa usada alcançou um bilhão de dólares, anualmente. As Nações Unidas estimam que mais de 25% da roupa importada por países africanos, são usadas previamente. Tal como as doações se transformam em comércio, ainda proliferam outros Signores Vita por todo o continente. Mundo global de segunda mão…
Gana 1980