O Culto dos Bebês Não Nascidos: Entre a Fé Plástica e a Moral de Silicone

O Culto dos Bebês Não Nascidos: Entre a Fé Plástica e a Moral de Silicone

Vivemos numa era em que a realidade parece cada vez mais fabricada — moldada não apenas por algoritmos, mas por silicone e vinil. O surgimento e a disseminação dos unborn babies dolls, bonecos hiper-realistas que simulam fetos humanos em diversos estágios de gestação, são mais um sintoma de uma sociedade que perdeu o norte ético, mas insiste em apontar bússolas morais a quem atravessa mares de complexidade. São arte? Ferramenta terapêutica? Ou instrumento ideológico de um novo tipo de fundamentalismo visual?

Com veias visíveis, pele macia e expressões angelicais que em nada lembram a anatomia real de um embrião de 10 ou 12 semanas, esses bonecos seduzem os sentidos. E é justamente aí que mora o perigo. Na aparente inocência da representação, disfarça-se uma agenda. Enquanto muitos enxergam neles um recurso didático ou um consolo para mães enlutadas, o que se desenha por trás é algo mais grave: a conversão da dor humana em espetáculo político. E da ciência, em panfleto.

Nas mãos de movimentos antiaborto, os “bebês de silicone” têm sido erguidos como ícones silenciosos de uma cruzada ideológica que despreza nuances. São expostos em praças, entregues em frente a clínicas de saúde reprodutiva e apresentados em escolas sem qualquer contraponto crítico. Por trás do rosto sereno dos bonecos, paira o grito mudo de uma sociedade que prefere a emoção à razão — e o juízo à compaixão.

Não estamos falando apenas de um objeto de plástico. Estamos diante de um ritual simbólico que reduz debates profundos — como os direitos reprodutivos, a autonomia feminina e a separação entre religião e Estado — à performance de uma vida não vivida. Trata-se da canonização do embrião e da criminalização da mulher, embaladas em plástico flexível, vendidas pela internet e exaltadas em púlpitos e palanques.

Enquanto isso, o caos social se alastra. O mesmo Estado que incentiva a exibição desses bonecos em nome da “defesa da vida” falha em garantir o mínimo para os já nascidos: pré-natal digno, acesso a métodos contraceptivos, creches, educação sexual e saúde mental. O culto ao feto contrasta com o abandono sistemático da infância real — aquela feita de carne, osso e necessidade. O moralismo seletivo só enxerga a vida quando ela cabe na palma da mão e não pede por vacina, merenda ou escola.

Há também o uso terapêutico, e aqui é preciso cuidado. Para mulheres que sofreram perdas gestacionais, o uso dos chamados reborn dolls pode representar um gesto de acolhimento simbólico. Mas até esse campo, tão íntimo e delicado, tem sido colonizado por discursos de culpa e doutrinação. Em vez de consolar, há quem instrumentalize o luto para reforçar uma única visão de mundo, negando a pluralidade de experiências e decisões.

Se quisermos sair desse labirinto de plástico e pânico moral, será preciso reabilitar o pensamento crítico. Vivemos a era do simulacro, onde o feto de silicone ocupa o lugar do crucifixo — não por fé, mas por fetiche: pela pureza, pela ordem, por uma vida idealizada que ignora a brutalidade da realidade concreta. Um fetiche que transforma o útero em trincheira, o corpo feminino em território de guerra cultural, e o sofrimento íntimo em performance pública. Não por acaso, onde esses bonecos proliferam, prospera também a radicalização política e o controle sobre direitos reprodutivos. E, no fundo, não se trata de nascer — mas de viver com dignidade. Por isso, diante dessa teatralização da gestação, a pergunta que resta não é o que esses bonecos mostram, mas o que eles escondem. A quem interessam? A quem silenciam? E quem lucra com a fantasia de uma vida que, ironicamente, ainda nem começou?

Por Palmarí H. de Lucena