Comemoramos hoje quarenta e cinco anos da nossa saída do Brasil, rumo à terra prometida. Buscando a história e escrevendo a nossa própria. Acordamos cedo. Encontramos o que procurávamos. Escarcela antiga. Empoeirada. Derramamos o conteúdo na cama. Documento de emigração, o “green-card”, modelo antigo. Vários passaportes e laissez-passer da ONU, expirados. Cartões de imunização. A burocracia do mundo. Foto antiga de um homem jovem, cara séria. Gravata apertada demais para o conforto. Terno preto com listas brancas. Comprado para um evento acadêmico que nunca aconteceu… Determinação nos olhos. Lembramos daquele dia. Sorrimos.
Fechado para balanço…
Não recordamos muita coisa do dia 16 de dezembro de 1964. Estávamos no Aeroporto dos Guararapes. O Caravelle da Panair recebendo os últimos cuidados. Pássaro mimado. Perez Prado e sua Orquestra tocando o mambo El Manisero. Canção feliz sobre um vendedor de amendoim. Não sabemos por que ouvíamos nela a palavra “adiós”. A palavra era “maní”, amendoim. Ato falho… Em duas horas deixaríamos tudo que conhecíamos. Sonho transformando-se em destino.
A trilha de vapor da aeronave formava duas paralelas no céu. Afastando-se rapidamente do Recife, dos “velhos sobrados, compridos, escuros”. O lugar onde o sonho amadureceu. O livro mágico. A pedra da Roseta para a America de Alexis de Tocqueville. A democracia, por ser um estado de sociedade, se torna também o que ela deve ser, por não conduzir a um estado de governo, a uma ditadura. O povo quando associado livremente, é o dono do seu destino. Estávamos bem longe de casa, bem perto do que queríamos viver. O fermento e as tragédias da década dos anos 60 redefinindo tudo, desafiando todos, criando o mundo possível. E lá estávamos… Organizando trabalhadores; mobilizando pessoas excluídas; ensinando a magia da não-violência a membros de gangues. Engajados na guerra justa, guerra contra a pobreza.
Férias na África. Seduzido pela beleza da arte africana. O misticismo, as máscaras, as sociedades secretas do povo Dogon, no Mali. A estética africana presente nos quadros e esculturas cubistas. As “Meninas de Avignon”, de Pablo Picasso. Mudamos para a África em 1980. Treze anos envolvidos com lugares e situações onde a miséria, exclusão social e conflitos tomavam precedência sobre outras condições humanas. Conhecemos a África, conhecemos todas as Áfricas. Boa ou ruim. Não importava. Havíamos encontrado nosso grande amor…
Voltamos para a America Latina. Revoluções, conflitos. O istmo centro-americano em chamas. Fazendo o presente menos possível. Entendendo rapidamente que o caminho da paz nem era fácil, nem uma opção preferencial para muitos. Erupções vulcânicas, terremotos, maremotos, furacões e guerras assimétricas. A única coisa que não faltava era vítimas… Aprendendo a dura e amarga verdade. Nunca começando nada. Sempre começando de novo. Mesmo assim prevalecemos. A paz venceu, eventualmente.
Vivemos situações que exemplificavam a falha da pessoa humana em comunicar-se, em optar por compromisso em vez de conflito. Diferenças político-partidárias ou tribais transformando-se em antagonismos pessoais, justificando ações caracterizadas por sua mesquinhez e desrespeito ao povo. Todos os conflitos, subdesenvolvimento e miséria que presenciamos foram causados pela incompetência, pela inabilidade de lideres de entender, que o desenvolvimento humano só é possível, quando a civilidade e a convivência civil permeiam suas relações. Nas palavras de Benito Juarez, o grande estadista mexicano, “… o respeito ao direito alheio é a paz.”
Testemunhamos o começo de uma nova história. Não o fim da historia de Francis Fukuyama. Muitos países consolidaram ganhos democráticos e começaram a crescer. Outros relegados ao subdesenvolvimento por guerras civis, conflitos e corrupção, ainda não entenderam que o desenvolvimento humano, não é possível sem a paz. Que a paz não é sustentável, sem democracia.
Fotos antigas. Família, filhos, netas, lugares. O homem que nos levou ao aeroporto… Só memórias. Triste, lágrimas nos olhos. “Vá meu filho, não desista do seu sonho.” Abraço, rostos colados com o suor dele… O soldado que venceu todas as guerras sem disparar um tiro. Música maestro!
Musica movetur mundus.
Reorganizamos a papelada e os mundos espalhados sobre a cama. Fechamos os livros e nos lembramos de Calderón de la Barca, “Vive Dios, que pudo ser…”
João Pessoa 2009