O cabaret na colina de Montmartre…

O cabaret na colina de Montmartre…

Plataforma do funicular, plano inclinado, para a Basílica de Sacré-Coeur. Chegamos, mal notamos que havíamos partido. Menos de um minuto, Montmartre aos nossos pés… Contemplamos Paris, o rio Sena. Subimos os degraus da casa de Deus, sem grande pressa. Entramos, nossas narinas seguindo o aroma reconfortante do incenso. Completamos o pit-stop espiritual, saímos rapidamente. Os bárbaros estavam às portas do templo, tirando selfies. Caminhamos rapidamente rumo ao noroeste, parte posterior, lado esquerdo da torre. Ameaçante fim de tarde cinzento. Mulheres não passavam ou faziam sinais. Ninguém se abraçava nas calçadas… Tudo banal, sob o céu de Paris. Vendedores de souvenires por todos os lados. Buscávamos algo mais profano, menos digital, um cabaret chamado Au Lapin Agile.

Chegamos a Place du Tertre, meio do caminho entre a basílica e o cabaret. Começou a chover. Artistas acompanhando turistas, terminado perfis ou caricaturas. Trabalhando com mais rapidez e destreza. Pastéis secos e lápis de cor sobre cartolina preta. Bem arrière-gard, avant-gard era coisa do passado. Rosas vermelhas embrulhadas individualmente em celofane. Removidas sem cerimônia, das mãos das mulheres, após a mínima hesitação do cavalheiro. Encontramos refugio na calçada de um café, em frente da praça. Protegidos, comemos mais baguete do que devíamos; bebemos mais vinho do que podíamos. Prontos para a grande noitada de despedida de Paris.

Descemos a ladeira da rue des Saules. Chegamos a uma encruzilhada, lado direito, nos deparamos com a famosa vinha de Clos Montmartre. O Au Lapin Agile guardava sentinela, na outra esquina. Pouco movimento, o lugar parecia fechado, talvez discreto. Luz na porta nos convidava para uma viagem no túnel do tempo até a Belle Époque de Toulouse-Lautrec. Toc, toc. Yves Mathieu, o proprietário, nos recebeu na ante-sala. Ouvíamos uma mulher cantando uma bela canção. Conversamos um pouco. Perguntamos por Maria, sua esposa, como sempre, estava na Espanha. Aplausos… Convidou-nos a entrar. Subimos os mesmos degraus que Renoir, Proust, Picasso, Modigliani, Apollinaire e Utrillo.

Sentamos em bancos de madeira, pouco confortáveis. Décadas de nomes e iniciais esculpidas na madeira. Canções, música, humor e poesia. Pianista, acordeonista, doublés de comediantes e cantores. Casa cheia.

Sala única, parcamente iluminada. Piano encostado na parede, próximo a porta de entrada. Artistas sentados a uma mesa, comportando-se como clientes, amigos da casa. Ninguém tinha pressa. Reprodução do quadro de Picasso “Au Lapin Agile”, pintado a óleo em 1905, na parede. Mesas com bancos simples de madeira espalhados pela sala. Despretensiosamente a história decorava o ambiente. Crucifixo na parede.

Yves comandando a trupe e a audiencia com gestos e movimentos exagerados – teatrais e gauleses, ao mesmo tempo. Le grand Maurice Chevalier, oh, u-lá-lá… Repertório completo, Piaf misturada com música folclórica, canções de cabaret do século 19. Audiência dividida em grupos, repetindo as palavras “oui, oui, oui – non, non, non”, do refrão da canção popular “Les Chevaliers de la Table Ronde”. Cantamos com o entusiasmo de alguém que havia recuperado a memória. Esquecida sobre a mesa, nossa pequena taça com conhaque de cereja.

Ambiente alegre. Casal sentado contra a parede, aparte, braços cruzados. Cantando mecanicamente “oui, oui”, sem emoção, olhando em direções opostas. Tipo lambrosiano, taciturno. Ela ainda mostrava migalhas de sonhos nos olhos cansados. Sorriso tímido, no fim da canção. Voltaram aos seus mundos. Próxima canção… Frederic, o filho de Yves, encerrou o show cantando “Dancez sur moi”, escrita por Nougaro, um dos seus antecessores no cabaret.

Subimos a ladeira em direção a Place de Tertre. Tocando “Samba de Verão”, enquanto chovia, dois guitarristas no barzinho da esquina. Estávamos acordados, Montmartre dormia. A vida é um cabaret, Au Lapin Agile muito mais que uma vida…

Paris 2010

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores