Completamente restaurada, a antiga fábrica de vinhos. Recém pintada, parede amarela lateral maculada por traços raivosos da discórdia urbana. A Rua da Areia era uma parada obrigatória nos passeios com nosso pai. Passagens breves recompensadas com goles prolongados do guaraná Dore e presentes de garrafas de Vinho Celeste da Tito Silva. Partiram conosco em busca da América, as duas últimas garrafas recebidas. Cacos de vidro e o aroma pungente de fruta fermentada na nossa bagagem, última lembrança.
Reconhecemos o prédio da antiga alfaiataria, destruído por um incêndio. Reformado anos depois, reaberto como um prostíbulo. Levado à falência devido à queda na demanda por locais oferecendo transações sexuais e a ascendência de motéis com a parafernália erótica do sexo diferenciado. Mural grafitado na fachada, possivelmente a única concessão à modernidade.
Chegamos ao Beco dos Milagres, sinistro, misterioso, pervertido, tântrico, o beco da nossa juventude. Passávamos sem ao menos lançar um olhar furtivo em direção às pequenas casas, calçadas altas e chão duro. Muitos pecados e poucas virtudes por aqui viviam, proibido a menores. Entramos com confiança adulta. Placa com o nome da rua, nosso professor de música. Citações bíblicas nas paredes de umas tantas casas à direita, prenúncio de duas pequenas igrejas evangélicas em ambos lados. Completando a paisagem, um grupo de casinhas modestas pintadas em cores vibrantes. Poucos vestígios de pecados ou pecadores.
Vinhas de maracujá encobriam uma passagem estreita entre um grupo de casas. Cercada de galos e cães, uma mulher desgrenhada nos chamou a atenção. Filha de uma notória vendedora de bilhetes de loteria, dublê de proprietária de barzinho. Procurávamos a fonte, explicamos, a Fonte dos Milagres.
Muro branco anônimo no final da rua, a fonte desaparecera. Lembrada somente por historiadores e estudiosos, a cena do brutal empalamento de Teresa, uma negra, por seu amante franciscano e dois cúmplices, um escravo e um serviçal indígena. Pecados enclausurados, perdidos na memória.