O Brasil vive uma situação inquietante: nosso Congresso Nacional, hoje, tem um poder sobre o orçamento que nenhum país desenvolvido ousaria conceder aos seus parlamentares. Ao contrário de nações como Alemanha, Canadá e Austrália, por aqui deputados e senadores não apenas aprovam o orçamento, mas também têm a última palavra sobre onde e como o dinheiro será gasto após a aprovação. Esse tipo de interferência direta é uma exclusividade brasileira — e um problema que se agrava a cada ano.
Tudo começou em 2015, com a famigerada PEC do Orçamento Impositivo. A partir daí, o Congresso passou a ter um controle ainda maior sobre as finanças públicas. Hoje, quase 24% das despesas discricionárias — aquelas que o governo poderia gastar livremente em políticas públicas — estão nas mãos dos parlamentares. Para termos uma ideia, na Alemanha, que ocupa o segundo lugar nesse ranking, esse percentual é de apenas 9%. E, como se isso não bastasse, entre 2021 e 2024, o Congresso brasileiro destinou um total de R$ 131,7 bilhões em emendas, um aumento de 87% em relação aos quatro anos anteriores.
A questão é que boa parte desse dinheiro vai parar nas chamadas “emendas de relator” e “emendas de comissão”, onde praticamente se perde qualquer possibilidade de rastrear quem está por trás das decisões. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal declarou o famoso “Orçamento Secreto” como inconstitucional, mas o esquema segue firme, apenas sob novos disfarces. O que era para ser transparência virou um labirinto de interesses escusos.
Enquanto em países da OCDE, o papel dos parlamentos é discutir as prioridades e fiscalizar a execução do orçamento, aqui no Brasil acontece o contrário. Aqui, o Congresso não só decide como também executa parte do orçamento, indicando para onde vai o dinheiro mesmo depois da aprovação da LOA (Lei Orçamentária Anual). Essa prática, como mostram os estudos de Marcos Mendes e Hélio Tollini, é única entre os países desenvolvidos.
E aí vem a cereja do bolo: nos Estados Unidos, por exemplo, se um parlamentar quer destinar verba para sua base, ele precisa negociar com o Executivo e explicar de onde esse dinheiro vai sair. No Brasil, o Congresso tem um passe livre. É como um cheque em branco: eles aprovam as emendas sem precisar cortar de nenhuma área existente. Isso cria uma espécie de “reserva automática”, onde ninguém precisa assumir o ônus de realocar os recursos.
O resultado? Um orçamento completamente fragmentado, sem planejamento, com verbas dispersas em centenas de pequenos projetos que muitas vezes servem apenas para garantir a reeleição de parlamentares. Em vez de termos um governo que pode planejar políticas públicas de longo prazo, estamos à mercê de interesses paroquiais e eleitorais. E quem sofre com essa falta de organização é o cidadão, que fica sem acesso a serviços básicos, enquanto nossos representantes transformam o orçamento em moeda de troca política.
A cada ano, o Brasil se afasta mais das boas práticas internacionais de gestão pública. O orçamento, que deveria ser uma ferramenta para o desenvolvimento, virou uma arma nas mãos de quem coloca os próprios interesses acima dos da população. Chegamos a um ponto em que o poder do Congresso sobre o orçamento ameaça a autonomia do Executivo, comprometendo a capacidade do governo de implementar políticas que realmente melhorem a vida da população.
Está mais do que na hora de repensar esse modelo. Se não fizermos isso agora, corremos o risco de caminhar para um abismo onde o orçamento do país se transforma em um jogo político sem fim — enquanto o povo fica para trás, preso nas consequências dessa verdadeira “ditadura parlamentar”.
Palmarí H. de Lucena