Mito bíblico da Torre de Babel nos conta que descendentes de Noé, decidiram construir uma cidade na planície de Sinear e uma torre que alcançasse os céus, com intuito de tornar-se famosos e não serem espalhados pela face da Terra. O Senhor desceu para ver a cidade e a torre e disse, “[…] eles são um só povo, falam uma só língua e começaram a construir isso. Em breve, nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros.” Pararam de construir a cidade, o Senhor os dispersou dali por toda a Terra, com pessoas vagando entre ruínas, incapazes de comunicar uns com os outros, condenadas a incompreensão mútua.
É evidente que nos últimos anos, somos dois países diferentes, ocupando o mesmo território, com visões diferentes da Constituição, economia e da própria história da Nação, polarizados entre dois extremos, o “nóis contra eles” e “pessoas de bem contra as do mal”. Babel é uma história de fragmentação de tudo, sobre o espalhamento de pessoas que formavam uma comunidade. É uma metáfora do que está acontecendo agora, não só entre a direita e esquerda, como também no cerne dos dois extremos, dentro de universidades, empresas, associações, instituições culturais e nossas famílias.
Pessoa hábil ou sortuda, pode criar uma postagem que “viraliza” transformando-a “famosa na internet”, por alguns dias, podendo também ser vilificada por comentários odiosos, alcançando fama ou ignominia provocadas por cliques de milhares de estranhos e contribuindo seus próprios cliques para o jogo. Perda de tempo ou escassez de atenção não é o que seja relevante, o que importa é a lapidação continuada da verdade. Ataques bem-sucedidos geram bombardeios de “likes” e replicas. Plataformas com viralização aprimorada, provocam retribuição massiva a pequenas ou imaginadas ofensas, com consequências graves até suicídios de pessoas inocentes. Turbas incontroladas por devido processo, atropelam a justiça ou inclusão, criando uma sociedade que ignora contexto, proporcionalidade, altruísmo, até a própria verdade.
Autocracias fazem propaganda usando o medo para provocar comportamentos obtusos, democracia, por outro lado, depende amplamente de aceitação da legitimidade das regras, normas e instituições. Quando perdemos confiança nos Três Poderes, autoridades sanitárias, forças de segurança ou academia, então todas as decisões são contestadas, eleições transformadas em luta de vida-e-morte para salvar o País do lado opositor. Influenciadores digitais atingem dissidentes ou pensadores matizados do seu próprio campo, inviabilizando um sistema baseado em compromisso político. Ainda não formamos uma “maioria exausta”, cansada de enfrentamentos, pronta para dialogar, chegar a compromissos, será que ainda estamos inexoravelmente perdidos nos escombros de uma Torre de Babel que nunca construímos?
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores