Deitado de modo inconfortável no degrau da entrada do mercadinho, o menino dormia o sobressaltado sono dos inquietos. Longa noite no reino mágico do crack. Momentos de exaltação, sem ansiedade. Janissários dando a vida pelas “pedas” soberanas. Chagas nos braços, pés calejados. Moscas comutando entre olhos semiabertos e uma fatia de bolo. Pessoas entrando e saindo. Evitam o corpo do menino, como se fosse um tapete de perdição.
Movendo-se sutilmente, um gato preto. Nariz no alerta, passos medidos. Caçador a procura de uma presa. Cheiro de galeto assado misturado com monóxido de carbono no ar. A hora do almoço se aproxima…
Dia movimentado. Motoristas à espera de vaga no estacionamento. Impacientes. Sinaleiras piscando, buzinas tocando. Alguns irados. Impropérios. “Bombado”, flanela na mão, observa calmamente a situação. Mordomo da calçada. Acomodando veículos nas poucas vagas disponíveis. Gestos firmes, porém profissionais. Rei Salomão brincando com peças de Lego urbano. Sempre abrindo a porta do veiculo: “Doutor… doutora… fique à vontade”. Gorjeta na mão, pequena reverência ao partir. “Muito obrigado, vá com Deus”. Próximo…
Sentadas precariamente em cadeiras de plástico, três mulheres e duas adolescentes. Bacias no colo, cheias de vagens e feijão verde debulhado. Candidatas à lesão por esforço repetitivo. Pequeno corredor entre o mercadinho e os quiosques de frutas e verduras. Vala aberta escoando água suja, receptáculos de lixo orgânico. Gari tenta manter a higiene do local.
Policiais observam a cena, sem interagir com as pessoas. Conferem o mostruário de CDs e DVDs. Primeiros acordes de “Love me tender”, invadem a calçada. Elvis Presley amando de verdade, amando com ternura. Realizando sonhos. Troca de ritmo brusca: “Você não vale nada, mas eu gosto de você”… A calçada se alegra. Atendente da banca de jogo do bicho anota números no “pule”. Milhar 5-7-2-6, do primeiro ao quinto, por favor. Visivelmente embriagado, o apostador ensaia pequenos passos de forró.
Mulher jovem. Bonita. Olhos sonhadores. Unhas pintadas em “verde fashion”. Corrente e pingente de ouro faux, com silhuetas de duas meninas. Arrumando rodelas de abacaxi em bandejas de isopor. Criança aproxima-se, pede dinheiro para comprar comida. Gesto de reverência e súplica. Banguela, mostrando sua “janelinha” com um sorriso cheio de desespero urbano. Estupor narcótico. “Fuinha”, um dos meninos de rua viciados em crack. Resposta imediata: “Pegue descendo”, na linguagem tão verbal das ruas. Epítetos, em resposta. Partiu em direção ao território mais fértil…
“Baixinho”, o parceiro de Bombado, almoçando na barraca da viela, no outro lado da avenida. Prato do dia: guisado com cuscuz, acompanhado de uma “bicada” de cana. Refeição terminada, moedas na pequena mesa. Hora de voltar ao trabalho. Caminha apressadamente em direção à lotérica. Entrega um pedaço de papel, com os números 03-11-27-40-52-60, a uma das “meninas”. Mega-sena, R$2.00. Preço barato para sonhar até o próximo sorteio.
Rumores, excitamento. Ocorrência do dia: farmácia próxima à loja de colchões, assaltada pela segunda vez na semana. “O moído foi grande… Três crianças, moradores de rua, assaltaram o estabelecimento com objetivo de roubar produtos para vender para comprar crack…”, anuncia o tabloide popular. Linguagem crua, simplista. Homem lendo o jornal em voz alta para uma roda de amigos. Reconhecem as crianças na foto. “Celebridades instantâneas na galeria universal da infâmia”. Morte prematura esperando acontecer…
Menino entrega um sanduiche a uma mulher. Distribuidora de panfletos anunciando um novo condomínio. Lanche embrulhado em plástico, com logotipo diferenciado. Esmola recebida de uma “doutora” na saída da padaria. Vendido sempre por R$1.50, pris fixe da rua. “Crack saciou sua fome, melhor do que estragar a comida”. Ato justificado.
“O povo é besta”, falou a criança. Perdida em uma encruzilhada do Reino da Pedra Mágica…