A Resolução nº 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em vigor desde 15 de maio de 2023, trouxe uma mudança radical no tratamento de pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que cometeram delitos. Essa medida determina que tais indivíduos, considerados inimputáveis ou incapazes de entender a ilegalidade de suas ações, não sejam mais encaminhados a hospitais psiquiátricos, mas sim recebam cuidados pela rede de atenção psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS). Embora o objetivo principal seja aprimorar o tratamento e a reintegração dessas pessoas à sociedade, essa resolução suscita diversas preocupações.
A transferência da responsabilidade pelo tratamento desses pacientes para hospitais gerais, Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) sobrecarrega uma rede de saúde já enfrentando dificuldades estruturais e de recursos. A falta de capacidade dessas instâncias para oferecer atenção especializada a transtornos mentais durante períodos prolongados pode comprometer seriamente o bem-estar e a recuperação dos pacientes.
Os profissionais de saúde mental destacam a importância do apoio familiar tanto em termos práticos quanto emocionais. No entanto, também é evidente a existência de situações em que esse apoio parece ausente. Muitas famílias expressam dificuldades em lidar com o sofrimento mental, especialmente durante crises, o que às vezes as leva a evitar buscar ajuda, com medo de sobrecarregar os entes queridos. Essa dinâmica revela um dilema complexo, onde os pacientes se veem divididos entre a necessidade de apoio e o desejo de não serem um peso para suas famílias.
Além disso, algumas famílias destacam as limitações nas relações familiares, afetando diretamente a qualidade do cuidado recebido. Isso leva a uma falta de compreensão sobre o transtorno mental por parte dos familiares, gerando desconfiança em relação aos comportamentos do paciente. Em muitos casos, essa falta de entendimento se manifesta na forma de superproteção, que, em vez de ajudar, acaba por privar o paciente de sua autonomia e reforçar uma visão infantilizada dele.
Essas reflexões estão em consonância com os princípios do modelo de atenção psicossocial, que cada vez mais reconhece a importância de envolver a família nas intervenções de promoção da saúde mental. Estudos têm demonstrado que ao compartilhar responsabilidades e oferecer suporte, os serviços extra-hospitalares podem atenuar os efeitos de eventos estressantes. No entanto, para que isso seja efetivo, é necessário que haja um reconhecimento por parte dos serviços de saúde mental do papel fundamental da família como parte integrante do processo terapêutico.
Nesse contexto, é essencial que a desospitalização seja acompanhada pela incorporação do apoio familiar como um recurso valioso nos serviços de assistência à saúde mental. Isso implica não apenas reconhecer a família como parte do tratamento, mas também capacitá-la para compreender e lidar adequadamente com os desafios decorrentes do transtorno mental.
Considerando que a maioria das famílias que cuidam de parentes com problemas de saúde mental são geralmente de baixa renda, vivendo em situações habitacionais inadequadas e sem recursos extras para prover necessidades básicas dos pacientes, além de enfrentar os desafios de cuidadores, também são sobrecarregadas com despesas relevantes para alimentação e acolhimento dos pacientes em suas casas. Portanto, é crucial que o poder público reconheça os problemas econômicos causados pela terceirização de cuidados intramurais às famílias de pacientes e desenvolva programas de apoio a microempresas ou pequenos empreendimentos com o intuito de gerar renda e possibilitar o emprego de pacientes em recuperação psicossocial dentro do seio da família.
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores