Nara: Onde os Deuses Andam Devagar

Photo by Palmarí H. de Lucena
Nara: Onde os Deuses Andam Devagar

Em Nara, o tempo caminha em silêncio, como um monge em meditação. Cada pedra é uma lembrança. Cada sombra, um sussurro de eras passadas. Não se trata apenas de visitar a antiga capital do Japão — mas de atravessar um portal onde o presente se curva com respeito diante do espírito ancestral que ali habita.

Fundada no ano de 710, Nara — então Heijō-kyō — foi a primeira capital permanente do Japão. Inspirada nas cidades da dinastia Tang, a nova sede do império não era apenas política: era também espiritual. Foi ali que o budismo, trazido da China e da Coreia, deixou de ser uma ideia estrangeira e se enraizou no solo japonês como força de Estado, cultura e fé.

No coração da cidade repousa o monumental Todai-ji, templo budista cuja estrutura de madeira, uma das maiores do mundo, guarda em seu interior o incomparável Daibutsu, o Grande Buda de bronze. Com quase 15 metros de altura e 500 toneladas de peso, a estátua representa o Vairocana, o Buda Cósmico — expressão da luz universal e da sabedoria que tudo penetra. Mais do que um monumento, o Daibutsu é um chamado à introspecção. A energia que emana de seu semblante sereno é quase tátil, como se ali repousasse a alma de toda uma nação em formação.

O Todai-ji não é apenas um templo. Foi sede do poderoso Kegon-shū, escola budista que, sob a proteção do Estado e do clã Fujiwara, transformou Nara num centro de erudição, arte e liturgia. A cerimônia da consagração do Buda, em 752, foi um espetáculo espiritual e diplomático — com monges de diversas partes da Ásia e o imperador ajoelhado diante do sagrado.

Mas Nara é mais que budismo. Ao lado dos templos, o xintoísmo florescia com igual reverência, em santuários como o Kasuga Taisha, fundado também pelos Fujiwara. Ali, entre milhares de lanternas de pedra e bronze, os deuses xintoístas — os kami — recebem orações entre a luz e a penumbra. O santuário é dedicado à divindade protetora da família e, por extensão, à fertilidade, à colheita e à harmonia da natureza. No xintoísmo, não há dogma: há presença. Os cervos sagrados, que circulam livremente pelo Parque de Nara, são vistos como mensageiros desses deuses — e, por isso, caminham entre os humanos com a dignidade de um ritual vivo.

Nara, portanto, não é apenas um lugar. É um entrelaçamento sagrado entre budismo e xintoísmo, entre poder e devoção, entre a natureza e o espírito. É onde o imperador deixava de ser apenas governante e assumia o papel de ponte entre o céu e a terra. Onde cada templo, cada jardim e cada lanterna não são enfeites, mas signos vivos de uma cultura que se expressa em silêncio, em pedra, em aroma de incenso.

Hoje, o viajante moderno encontra em Nara muito mais que turismo. Encontra um Japão que ainda reza com os pés no chão e os olhos voltados para o invisível. Entre templos e santuários, entre monges e cervos, entre história e eternidade — Nara nos ensina a andar mais devagar. E, talvez, a ver mais fundo.

Palmarí H. de Lucena