A vastidão desértica da Patagônia, escondida na curvatura meridional da Terra, revela seus desafios e contradições de maneira crua e poética. O cenário, dominado por estepe, moitas espinhentas e pequenos arbustos, exibe uma paleta de verdes e cinzas que contrasta maravilhosamente com o azul turquesa quase etéreo dos lagos, enquanto picos cobertos de neve se erguem à distância.
Ao longo das estradas sinuosas, demarcadas por cercas que delineiam estâncias imensas, pequenas casas surgem esparsas, como testemunhas humildes da beleza inóspita que se estende diante de nós. Sob o céu azul, um condor majestoso desliza, revelando, com cada movimento, os mistérios de uma terra que parece alheia à presença humana. Nós, meros intrusos, nos encontrávamos em uma pradaria vastamente despovoada, onde os confortos da modernidade se dissipam diante da natureza bruta.
O cenário de hoje, tão fascinante quanto desolador, é o prólogo de uma história dolorosa. A ocupação sangrenta deste “deserto” eliminou, dispersou ou submeteu os povos originários, cujas crenças ancestrais foram insuficientes para protegê-los dos preconceitos e da ganância dos colonizadores. O darwinismo econômico europeu, implacável, escreveu o epílogo de uma história milenar, trocando a sabedoria das culturas indígenas pela brutal eficiência da revolução tecnológica, movida pela demanda de carne e lã no mercado internacional. A Patagônia, destino de colonizadores, marginais, santos e bêbados, tornou-se um refúgio para aqueles que fugiam de seus passados, transformando-se em hóspedes desconfortáveis de uma geografia imponente, um exílio no fim do mundo.
Entre as trágicas consequências da colonização, uma em particular destaca-se pelo impacto ambiental: a introdução do castor. Esses roedores, caçados implacavelmente no Canadá, foram trazidos à Terra do Fogo em 1946, com a esperança de replicar a lucrativa indústria de peles. No entanto, a falta de predadores naturais e o desconhecimento sobre o frágil ecossistema local transformaram essa tentativa mercantil em uma catástrofe ecológica. Os castores proliferaram, ultrapassando os 135.000 indivíduos, devastando as florestas nativas e os riachos do sul da Patagônia. Ironicamente, a indústria da pele nunca prosperou, mas o impacto nos ecossistemas locais persiste, desafiando os esforços de conservação.
Nosso percurso pela Patagônia culmina na majestosa jornada pelo Lago Argentino, onde icebergs de formas e tamanhos variados flutuam, pintando a paisagem com diferentes tons de azul. A navegação pelo Canal dos Icebergs nos leva ao imponente glaciar Perito Moreno, uma das maiores atrações do Parque Nacional dos Glaciares. No dia seguinte, seguimos pelo braço norte do lago, encontrando as geleiras Upsala e Spegazzini, cada uma impressionando por suas características únicas – a primeira, por sua vastidão, e a segunda, por sua altura monumental.
A cada avanço, contemplamos em silêncio a grandiosidade dessas massas de gelo milenares, que descem dos Andes em direção ao lago, formando paredes brancas e azuladas. A imensidão gelada estala e se fragmenta, liberando blocos de gelo que caem nas águas turquesas, iniciando uma jornada rumo ao desconhecido. É um espetáculo natural, um ritual ancestral que continua a nos lembrar da majestade e do mistério de nosso planeta, enquanto a Patagônia, silenciosa e eterna, mantém seu papel de guardiã de uma beleza selvagem e indomada.
Palmarí H de Lucena
Parabéns meu amigo admirável!!! Como é bom nos debruçarmos nesses seus belos e ricos relatos, ao descrever, não somente em palavras, mas, através da emoção, incontida e sentida em cada frase , a beleza apurada em seu olhar, que, de forma tão forte, chega até os meus!!! Abs
Excelente.
Muito bem escrito,vivemos essa emoção,inesquecível