Mercadores da miséria no Vale do Rift, berço da humanidade…

Avião monomotor estacionado no pátio de manobras do Wilson Airport, cidade de Nairóbi. Inspecionando os ailerons, dois mecânicos caminhando ao redor do Cesna Caravan. Mulher branca próxima à meia-idade, farda cáqui de um “bush pilot”, acompanhava seus gestos e observações com interesse profissional. Polegar prá cima, inspeção concluída. O pássaro estava pronto prá voar…

Cathy colocou sua valise de piloto no interior da aeronave. Caminhou em seguida na direção ao pequeno terminal. Formalidades do vôo, limite máximo permitido para três passageiros. Somalianos, em número de dois, embarcaram pequenos fardos de folhas de “khat” no compartimento de bagagem. Carga perecível. Desidratada, perderia seu efeito estimulante e valor comercial. Compatriotas na Somália mascavam o narcótico para aliviar a fome e a fadiga, “comida divina” dos antigos egípcios. Negocio lucrativo, onde a pobreza era a única indústria. Éramos o outro passageiro. Caixas de remédios da ajuda humanitária completaram o carregamento. Drogas e “drogas” voando em direção do horizonte africano…

Alerta! Tempestade de areia. Mascando khat mecanicamente, saliva verde escura escorrendo dos cantos da boca, os somalianos pareciam pouco interessados na situação. Esperamos ansiosamente pela liberação do vôo. Povoados Turkana estavam praticamente sem estoque de medicamentos essenciais.

Nosso destino, Lokkichokio. Estradas precárias e perigosas, devido aos conflitos entre rebeldes da etnia somaliana e o exército do Quênia. Viagem de mais de 900 km. O “khat air”, como chamávamos, era o único meio de transporte rápido e “seguro” entre Nairóbi e as zonas afetadas pela seca, ao Norte. Desembarcaríamos na cidade de Lodwar, capital do distrito de Turkana, no Vale do Rift, complementaríamos a viagem por terra, 215 km em nove horas.

Céu escuro. Solavancos. Estávamos em plena tempestade de areia. Clima de tensão, os somalianos cochilavam. Olhos colados no painel, Cathy conferindo de vez em quando um mapa aberto sobre as coxas, conversando no rádio. Gesto pedindo descrição, um psiu, dedo indicador tocando os lábios fechados. Lodwar estava interditado. Desviaríamos até uma missão católica. Pista de barro bem mantida, sem instrumentos,unicaalternativa viável. Estacionado na cabeceira, um Land Rover marcaria o lugar do pouso. Os somalianos só seriam informados sobre a “escala”, após a aterrissagem…

Finalmente, saímos da tempestade. Cathy inclinou a aeronave e voou em direção do reflexo, parecia ser do pára-brisa do jipe. Pessoas tangiam animais da pista, outros acenavam freneticamente, havíamos chegado ao lugar certo. Rodas tocaram solo áspero, engolidos por uma nuvem de poeira nos movíamos rapidamente. Cavalo de pau no fim da pista, chegamos…

Provavelmente, os somalianos perderiam sua preciosa carga. Embarcamos imediatamente no Land Rover. Tínhamos quase dez horas de viagem até o pequeno hospital de campo. Viajamos 60 km em três horas, problemas na caixa de câmbio. Tentaríamos nos arrastar até um pequeno vilarejo Turkana, ainda com a luz do dia.

Pequeno reservatório de água, construído por uma organização humanitária canadenses, homens armados, camelos e outros animais descansavam. Grupo de pessoas sentadas em forma de um círculo, cabeças cobertas. Mulheres. Mostramos nossa câmera, indicando que queríamos fotografar os camelos. Clic, clic, clic. Carabinas e adagas apontadas em nossa direção. Punhos irados no ar. Fotografávamos, sem saber, um grupo retornando de uma pilhagem de bens, animais e mulheres do Sudão. Demandaram reparação. Oferecemos dinheiro. Desdenham aqueles que não usam animais como instrumentos para transações comerciais e sociais. Apropriaram-se dos medicamentos, provavelmente os trocariam por animais ou armas.

Partimos. Continuamos nossa viagem, notários documentando os fatos nos labirintos escuros do mercado da miséria humana…

Quênia 1983